29/01/2019

O Sr. Levi Lilkerd

O Sr. Levi Lilkerd a Ame
Uma mágica iria mostrar.
Mas primeiro, um favor
Ela teria que realizar

Era muito simples,
Nada demais ou demorado
Ame só teria que trocar o remédio da mamãe
Por uma bala com nome engraçado

O Sr. Levi Lilkerd além de mágico
Era bom com piadas
Essa bala chamada cianeto
Faria mamãe dar muitas risadas

O Sr. Levi Lilkerd entregou as balas à Ame
Que as levou para casa
Colocou no lugar dos remédios,
Que ela jogou na privada

Depois que a mamãe descobrisse,
Iria rir até morrer.
Foi o que o Sr. Levi Lilkerd disse,
E depois a mágica ele iria fazer

Mamãe chegou em casa,
Com muita dor de cabeça.
Foi tomar seus remédios,
Que estavam em cima da mesa

Quando os colocou na boca,
Fez uma cara meio estranha.
Parecia bem amargo,
Até revirava as entranhas

Ela olhou para Ame,
Com os olhos arregalados.
Depois caiu no chão,
Deita lá, teve alguns espasmos

Ame ficou assustada,
Mas o Sr. Lilkerd disse que estava tudo bem.
A boca da mamãe fazia espuma,
E ela tremia igual a um trem

Depois de um tempo,
Ela parou de se mexer.
Mas nunca deu um sorriso,
Como o Sr. Levi disse que iria acontecer

Ame ficou com medo,
Foi correndo para fugir.
Mas o Sr. Levi Lilkerd
A agarrou, e então começou a sorrir

Era um sorriso estranho,
Que ia de orelha a orelha,
Seus dentes ficaram afiados,
Cresceu até a sobrancelha

Ame começou a chorar,
E por sua vida implorar.
Sr. Levi Lilkerd disse que logo tudo iria acabar
E começou a gargalhar.

"Eu ainda não te mostrei o meu truque",
Disse o monstro horrendo.
"Não posso te deixar ir embora,
Sem antes mostrar meu truque estupendo"

"Agora preste atenção, no que irá acontecer"
A boca do Sr. Levi Lilkerd ficou tão grande
Que poderia por tudo dentro,
Ata um elefante.

Ame chorou e gritou,
Mas ninguém a ouviria.
Sr. Levi Lilkerd disse que ainda não acabou,
A levantou e lhe deu uma mordida.

Arrancou seu braço inteiro,
Como se fosse de brinquedo.
Ame olhou aterrorizada,
Enquanto ele mastigava e lambia os dedos.

Ame chorou e gritou,
Estava cheia de dor e pavor.
Seu antebraço jorrava sangue,
E o Sr. Levi Lilkerd apreciou

"Vou acabar com seu sofrimento,
Porque você foi uma boa garota,
Fez tudo o que seu amigo imaginário mandou,
E não derramará mais uma gota"

O Sr. Levi Lilkerd a olhou,
Por uma última vez.
Ame o xingou de idiota e feio,
E foi a última coisa que fez

O Sr. Levi Lilkerd ficou satisfeito,
E deu um longo arroto.
Saiu da casa de Ame,
Para procurar por um garoto

Ele estava pensando como faria agora,
Para sua fome saciar.
Talvez iria atrás de Bryan,
Um garoto que amava brincar

Essa foi a história de hoje,
Espero que possam apreciar.
Se quiser saber o que aconteceu com Bryan, eu te conto,
Mas precisa um favor para mim realizar...

Autor: João Alves

28/01/2019

12 Minutos

ATENÇÃO : ESSA SÉRIE/CREEPYPASTA É +18. CONTÉM CONTEÚDO ADULTO E/OU CHOCANTE. NÃO É RECOMENDADO PARA MENORES DE IDADE E PESSOAS SENSÍVEIS A ESSE TIPO DE LEITURA. LEIA COM RESPONSABILIDADE.


No outono de 1987,  uma estação de tv local chamada WSB-TV2, de Atlanta, Geórgia, tentava fechar a programação matinal de domingo, que tinha um horário em aberto.

Após algumas solicitações de donos de empresários locais, o canal decidiu permitir o Reverendo Marly Sachs usar a hora que estava vaga para fazer um programa religioso. O programa estreou no dia 18 de Outubro, com pouco alarde.

O show era um programa religioso comum e consistia no Reverendo sentado em uma cadeira simples, de frente para a câmera, lendo passagens da Bíblia e discutindo suas interpretações e significados para o mundo contemporâneo. O programa tinha um número consistente de espectadores e manteve-se no ar ainda no início de Dezembro. Foi aí que a estação começou a receber estranhas reclamações dos espectadores de "Palavras da Luz com o Reverendo Marly Sachs".

As ligações eram de mulheres (apenas de mulheres), que descreviam vagamente estranhas sensações que tinham em intervalos específicos durante o programa. Elas diziam sentir náuseas, dor nas costas, tonteira e visão embaçada. As reclamantes, sem razão aparente, estavam convencidas que o programa que estava causando esses sintomas nelas. Depois de três semanas de reclamações intensas, foi descoberto que essas "sensações" aconteciam, estritamente, em intervalos de 12 minutos durante a exibição do programa.

A equipe de manutenção do pequeno estúdio checou todos os equipamentos, tanto de áudio quanto de vídeo, e não acharam nada defeituoso. Quando o Reverendo foi notificado dos incidentes, ele apenas encolheu os ombros e disse, enigmaticamente: "Algumas pessoas não conseguem aguentar a voz de Deus..."O diretor do estúdio, falhando em conseguir explicar a causa das reclamações, resolveu manter o show no ar.

Por volta de Fevereiro, a audiência caiu drasticamente, então foi decidido cancelar o programa. A direção do estúdio decidiu que era mais prudente gastar mais tempo da programação cobrindo a notícia que os outros estúdios se dedicavam: a epidemia de abortos espontâneos. A epidemia tinha começado por volta de Novembro. O número de grávidas saudáveis que tiveram abortos espontâneos chegou a mais de trezentos. O Centro de Controle de Doenças não conseguia achar uma explicação para esse acontecimento bizarro.

O Reverendo tomou a notícia do cancelamento do show com o que só pode ser descrito como indiferença. Quando foi notificado, ele não protestou, apenas concordou com a cabeça, quase como se soubesse. Ele deixou o estúdio depois da filmagem do último episódio sem dizer nenhuma palavra e desapareceu da face da Terra. Ninguém ouviu falar dele de novo, nem mesmo membros da congregação da igreja. O estúdio seguiu em frente, preenchendo o vazio com comerciais e continuaram a se focar na notícia dos abortos espontâneos.

Um ano e meio depois, um estagiário da WSB descobriu as fitas de "Palavras da Luz" e começou a analisá-las, na esperança de achar algo para ajudar em uma reportagem que a estação estava fazendo sobre o impacto que a religião tinha na cidade. O Incidente de Atlanta (foi como a epidemia de abortos espontâneos ficou conhecido nos jornais médicos) foi diminuindo e acabou por volta de três meses depois do programa do Reverendo Sachs tinha sido cancelado e já começava a ser esquecido pela população. Analisando as fitas, o estagiário fez uma descoberta perturbadora nas fitas.

Enquanto tentava parar a exibição em 10 minutos e 14 segundos, ele sem querer emperrou o botão de avançar a fita. Enquanto a imagem passava na tv, ele conseguiu desemperrar o botão. Quando conseguiu parar a fita, a imagem congelou em 36 minutos e 1 segundo. O estagiário caiu da cadeira quando viu a imagem congelada na televisão: a imagem de uma cabeça decepada decomposta tomava toda a tela. Depois de se recompor, ele voltou a fita e passou para frente de novo, para ter certeza que a sua mente não estava lhe pregando peças. Ele começou a ver com mais atenção o resto do filme e reparou que a imagem aparecia em intervalos de 12 minutos, por apenas um segundo.

Achando que era uma brincadeira que estavam fazendo com o cara novo, ele levou a fita para outros técnicos, preparado para ser zoado. Entretanto, os técnicos estavam tão confusos quanto ele. Ninguém tinha encostado nas fitas depois do programa ter sido cancelado. Depois do estúdio fechar, à noite, ele convenceu a um dos técnicos para ajudá-lo a ver todas as fitas de "Palavras da Luz". Eles descobriram que em todos os episódios tinha a mesma anomalia bizarra.

Um dos frames preservados do programa
Eles também descobriram que, conforme o programa avançava, a imagem ficava mais repugnante, conforme os vermes comiam os pedaços de pele e os pedaços de cabelo e carne tinham caído da cabeça. O técnico deixou claro para o estagiário que isso era, de maneira técnica, impossível, já que o filme não tinha nenhum sinal de que havia sido cortado e editado. Ele mesmo tinha estado na filmagem de todos os programas e sabia que não tinha nenhum jeito dessas imagens terem sido colocadas no filme.





Tudo isso foi mostrado para o diretor do estúdio que, temendo uma retaliação por permitir que esse tipo de imagem tenha parado no ar, ordenou que todas as fitas fossem destruídas. Ele disse para o estagiário e para o técnico que não tinha nenhum interesse em saber quem tinha feito, só o que importava era "proteger os funcionários e a emissora". Ele ordenou que nada disso fosse dito para mais ninguém.

O técnico esqueceu de tudo rapidamente, tratando o incidente como apenas uma pegadinha escrota de alguém, mas o estagiário não conseguia deixar pra lá. Ele fez a maior quantidade de cópias que conseguiu, antes que os originais fossem destruídos, e levou para ver se conseguia encontrar algo que desse uma pista de quem fez isso e do porquê.

Uma semana depois, ele tentou convencer o técnico a ajudá-lo de novo, dizendo que ele tinha descoberto algo mais perturbador que as imagens em si: quando os frames das imagens eram colocados em sequência, a boca da cabeça parecia se mexer, como se tentasse formar palavras. O técnico, com medo de perder o trabalho, disse para ele se livrar das cópias e não falar mais naquilo.

Uma semana depois, a polícia respondeu um chamado de emergência feito por uma senhora que morava no subúrbio de Atlanta, já no fim da tarde. Ela tinha escutado sons horríveis vindo da casa do vizinho, onde morava um jovem casal. Ela disse para a atendente da linha de emergência que a mulher estava grávida e que ela estava com medo de que algo terrível tenha acontecido. Quando os policiais chegaram, vinte minutos depois da ligação, eles viram luzes pela janela e saindo da porta entreaberta. Eles entraram devagar e foram em direção à sala de estar.

Lá, eles encontraram uma jovem mulher morta, com o abdômen aberto. A ferida era irregular e dava início a uma trilha de sangue que levava até o sofá, do outro lado do cômodo. Ali, sentava-se o seu marido, o estagiário do estúdio, nu, com o cadáver de seu filho, ainda não totalmente formado, em seus pés, morrendo. Nas mãos ele tinha o pedaço de metal que ele tinha usado para estripar sua esposa grávida. A televisão estava ligada, passando em loop a filmagem silenciosa de uma cabeça decepada e decomposta que sibilava palavras inteligíveis.

A história na delegacia, no outro dia, era que o estagiário continuava dizendo, em voz baixa, enquanto o levavam embora: "A luz de Deus os chama..."

Fonte

Esse conto foi traduzido exclusivamente para o site Creepypasta Brasil. Se você vê-lo em outro site do gênero e sem créditos ou fonte, nos avise! Obrigada! Se gostou, comente, só assim saberemos se vocês estão gostando dos contos e/ou séries que estamos postando. A qualidade do nosso blog depende muito da sua opinião!

22/01/2019

Kaphyotos

Pretendo terminar essa carta antes que o veneno faça efeito no meu corpo. Custou a mim, tempo e dinheiro considerável, para que enfim eu finalmente conseguisse uma substância que me matasse sem dor, mas sem que eu precise causar náuseas para as enfermeiras que me acharem no meu quarto.

Na rua que nasci e passei minha infância, nos subúrbios de uma cidadezinha do Arkansas, havia um velho senhor que dizia ter lutado na primeira grande guerra, e dizia que nela perdeu tudo o que já amou; Sua mulher, seu futuro filho, e metade de sua perna. Por isso ele dizia odiar todos os alemães e seus "falsos deuses". Quando questionado sobre quem seriam os falsos deuses, ele dizia que eram os frutos do acasalamento entre morte e loucura, seus nomes já eram suficientes para levar o mais corajoso dos homens à insanidade.

Poucos anos mais tarde o velho morreu em sua cama, e alguns anos a mais fui forçado a abandonar meu lar e me sujeitar ao serviço militar. Não estávamos em tempos de guerra ou crise, porém após a derrota fascista, todos os salários subiram, e uma carreira no exército era simplesmente a mais fácil. Ou ao menos aparentava ser.

Nos primeiros meses, após uma discussão com um superior, que se certificou de infernizar a minha vida depois disso, eu fui me tornar limpa-convés no barco de uma companhia que, em troca de ter disponibilizado barcos durante a guerra, recebeu soldados como funcionários. Durante os primeiros dias, tudo ocorreu relativamente bem, senão fosse pelos enjoos e náuseas constantes de meia tripulação que nem sequer havia visto o mar, onde eu estava incluído.

Diferente do meu serviço em terra, no barco virei amigo do capitão. Ambos havíamos sidos desprezados pelo general que me colocou naquele barco, e eramos os únicos dois em todo o barco torciam para a mesma seleção futebolista, logo, nos tornamos bom companheiros. Até que após uma forte tempestade, que havia nos tirado algumas poucas milhas para longe da rota que seguíamos, avistamos um velho pesqueiro alemão, que parecia estar abandonado a pelo menos uma década.

O capitão de nossa embarcação, deduziu que pela localização do barco, assim como aparentava não ter ninguém a bordo, se tratava de um barco-espião, e que a tripulação já devia ter sido capturada ou morta a um bom tempo. Ele então pediu que metade dos guardas do barco fossem até o pesqueiro, posição que, coincidentemente, eu havia sido promovido alguns dias antes. Então eu e mais dois homens fomos até o barco alemão, armados com velhos fuzis militares.

Ao chegarmos na embarcação, a primeira coisa que notamos foi o forte cheiro de sangue e enxofre que parecia vir da sala de máquinas. Fora isso, o barco estava limpo de forma surreal. Se não fosse por termos reconhecido que era um modelo antigo, seria impossível dizer que o barco tinha mais que 10 anos, cada peça de metal brilhava como se tivesse sido feita da prata mais polida do mundo.

Tiramos na moeda para selecionar quem iria descer para descobrir a causa do mal cheiro. Obviamente, com o azar que tive durante minha vida toda, eu fui o escolhido pelo destino; Destravei a arma, e desci até a parte debaixo da embarcação, atento a cada som que eu escutasse. Naquele momento notei outra coisa, era impossível escutar o barulho de fora, ou sentir o balanço do mar; De certa forma, era como se eu estivesse parado no tempo. Ao finalmente chegar na sala de máquinas, tive uma visão que não posso descrever em palavras. Era como se todos os membros da população tivessem sido quebrados, retorcidos e esmagados, e enfim empilhados em um cubo de carne, sangue e ossos quase que perfeito.

No centro da sala, onde deveria estar um motor, havia somente uma placa de pedra coberta de algas e inscrições em letras que jamais tinha visto antes. Ao tentar ler os símbolos, uma sensação de náuseas e vertigem tomou conta de mim, como se meu cérebro estivesse sendo sugado por um canudo em minha testa. Alguns segundos depois retomei os sentidos, e tentei analisar a sala. Na parede, pintado com o que parecia ser sangue e fezes, estava uma palavra em letras normais, escrito de uma forma que as últimas letras pareciam ter sido feitas por alguém ou se contorcendo, ou em loucura.

"Kaphyotos"

Uma dor agoniante tomou conta de mim quando li. Ao me virar para a saída, vi um ser asqueroso, tinha o corpo de um lagarto, porém humanoide, e no lugar da cabeça, havia apenas uma massa negra, feita de olhos, tentáculos e bocas. O cheiro da criatura me atingiu em segundos, era uma mistura de enxofre e carniça tão forte, que me fez perder a consciência em poucos segundos. A última coisa que vi foi os tentáculos da criatura se moverem em minha direção.

Acordei, segundo o capitão, três dias depois na enfermaria do meu barco. Meus companheiros, segundo ele, impacientes com minha demora, foram para a sala de máquinas e me encontraram inconsciente em uma poça de fezes e sangue. Após verem o bolo de corpos, me tiraram de lá, e logo depois, afundaram a velha embarcação com algumas bananas de dinamite, como fora ordenado pelo exército americano.

Quando questionei sobre a placa e as inscrições na parede, eles afirmaram não ter visto nada. Acreditei de princípio, até que um dos que me resgataram tirou a própria vida colocando a cabeça em um moedor de carne. As memórias da palavra e da criatura que vi naquele dia continuaram me causar pesadelos durante toda minha vida. Sinto que aquela criatura pretende em algum momento vir me buscar, e confesso ter medo do que ela poderia fazer para mim.

Por isso eu peço que entendam minha decisão de tirar minha própria vida. Poucos segundos atrás escutei sons do lado de fora, e um forte cheiro de sangue e enxofre tomou o quarto por completo.

Sei que ele está aqui.

E nada vai o impedir.

Autor: M. Medeiros

15/01/2019

Reunião Familiar

Caiu finalmente a tempestade que tanto ameaçou a cidade naquelas horas plúmbeas precedente ao o ocaso.

A chuva era torrencial e com ela precipitavam-se os mais vorazes trovões e relâmpagos. Alguns dos últimos atingiam o solo assustando perversamente as testemunhas, para depois surdá-las com o ribombar do estrondo que os seguia.

Naquela noite ninguém dormiu direito. Quase toda a cidade passou em claro seu período de descanso. Uns simplesmente estavam horrorizados demais pela violência da tempestade, outros corriam freneticamente no interior de suas casas arrastando móveis e trocando bacias cheias pela água das goteiras.

Mariza fora uma das que não pregaram as pestanas por medo. Passara a noite em alerta sobressaltando-se a cada novo estalido ou trovão. Temia mortalmente as tempestades. Sobremaneira as noturnas.

Quando criança perdera ambos os pais e uma sua irmã para as águas revoltosas do rio que inundara sua casa devido ao aumento absurdo de seu volume promovido pelas águas da chuva.

A moça morava sozinha e sua casa era muito antiga. Sempre que a noite caía, ela pensava ouvir coisas ou mesmo perceber vultos furtivos com o canto dos olhos. As ripas do assoalho as vezes rangiam no escuro deixando os nervos da jovem em frangalhos.

Nesta noite em especial, Mariza havia acendido todas as lâmpadas da casa, pois temia o escuro pouco menos que as tempestades. Tinha aceso também algumas velas, como precaução para o caso de a energia faltar.

Como estivesse em claro por horas a fio e a tempestade fosse de uma força sobrenatural, mantinha-se num estado de excitação nervosa que se protraíra desde alguns minutos após o inicio da torrente chuvosa até aquela hora da madrugada em que a energia, como esperado, finalmente acabou.

Mariza levantou-se da cama imediatamente e correu em direção à vela que se desmanchava por sobre sua penteadeira. A luz fraca da chama refletia-se bruxuleante no espelho oval em que ela se maquiava antes de ir trabalhar.

Assim que alcançou a vela um raio parecido com uma ramificação vegetal atravessou o céu noturno iluminando o aposento silencioso violentamente.

Mariza estancou aterrorizada com a vela por entre os dedos: jurava ter visto refletida no espelho uma forma encarquilhada esgueirar-se pela fresta da porta entreaberta indo desaparecer num canto escuro do quarto.

Seu olho esquerdo piscou involuntariamente algumas vezes de nervoso.

A moça, mais que depressa, saltou agilmente sobre sua cama e direcionou a luz amarela da vela para o tal canto do aposento. E foi com grande surpresa e terror que viu sentada em sua cadeira de balanço uma velha senhora enrugada e macilenta de olhos cavos, profundos e cabeleira revoltosa surgida sabe-se lá de que pesadelo. A velha tamborilava seus dedos aduncos e descarnados nos braços da cadeira como se estivesse tão nervosa quanto a petrificada Mariza exibindo uma terrível careta de desaprovação para a tempestade lá fora.

Ante a visão aterradora da senhora surgida da escuridão, a vela titubeou por entre os dedos da jovem, indo cair macia nos lençóis amarrotados da cama. E nisso apagou-se no mesmo instante, deixando no lugar de sua claridade amarelada a escuridão uniforme.

Adjacente ao quarto em que se encontrava o par inusitado de mulheres havia um pequeno banheiro privativo do cômodo, ao qual se tinha acesso por meio de uma tímida porta na extremidade oposta a em que se encontrava a velha surgida das trevas da noite. Foi pra lá que a moça atirou-se desesperada de terror apertando-se portal adentro desajeitadamente.

O banheiro estava úmido por causa das goteiras e a chuva lançava-se furiosa contra o vitrô entreaberto do cubículo.

Mariza instantaneamente bateu a porta de ripas carcomidas abafando um grito com as mãos trêmulas. Não sabia o que fazer. De onde saíra o demônio que estava sentado em seu quarto?

Instintivamente a moça recuou assustada até encostar-se no canto de uma parede gelada de onde via o vitrô exíguo e a portinhola do banheiro. Um outro relâmpago ofuscante brilhou em meio à tempestade e ela divisou uma sombra negra que estivera em pé na frente da pequena janela pelo lado de dentro do cômodo.

Suas pernas fraquejaram e a pobre mulher soltou um grito de terror escorregando no chão molhado e caindo pesadamente no azulejo frio.

Tentou se levantar, mas o desespero e a umidade no chão impediram-na de lograr êxito.

A forma sombria pareceu caminhar em sua direção. Mariza debatia-se e gritava horrorizada. Seus pés escorregavam no piso molhado do banheiro. E a figura, que agora estava entre a mulher e a pequena porta, aproximava-se inexoravelmente, Outro relâmpago clareou o retângulo azulejado de modo a fazer com que a moça percebesse o corpanzil volumoso de um homem lívido com feições deformadas angulares e cavidades vazias onde deveriam estar seus olhos aproximando-se dela. A tempestade recrudesceu. A portinhola do banheiro soltou um rangido lúgubre e demorado digno dos mais medonhos pesadelos de horror e a velha adentrou o recinto com andar arrastado e rígido.Marisa, ofegante, não conseguia levantar-se e o som da tempestade abafava seus protestos de pavor. Um trovão ensurdecedor ecoou por entre as paredes apertadas do cubículo quando a tétrica mão do ser abissal atingiu a face gélida da mulher terrificada. Uma risada tenebrosamente familiar seguiu-se ao toque do ente macabro juntamente com a voz esganiçada da velha caliginosa.

Marisa, no paroxismo de seu desespero inexplicável, petrificou-se apavorada com o toque glacial do espectro. E nessa hora uma descarga elétrica partiu o céu, dessa vez imediatamente seguida do brado encolerizado da trovoada.

E foi assim que ela acordou encharcada do próprio suor e quase enforcada pela fronha que arrancara do travesseiro enquanto se debatia presa pelos horrores do mais hediondo pesadelo que jamais tivera.

Levantou-se bruscamente e com olhos arregalados de espanto perscrutou o quarto envolto na penumbra sem nada avistar de estranho. Passando alguns instantes presa nessa contemplação fatídica, a mulher finalmente deixou que sua cabeça pendesse abruptamente soltando um suspiro de alívio por perceber que tudo não passara de um sonho mal. Lá fora a chuva caía pesada sobre a cidade.

Contudo, enquanto ainda tentava se acalmar olhando pensativa para as mãos trêmulas notou uma pequena marca arredondada de bordas enegrecidas no forro da cama que lembrava muito bem uma queimadura no tecido. Lembrou-se então da vela que caíra no sonho apagando-se imediatamente. Curiosa, a moça futucou a queimadura com o indicador tremulante.

Ela ainda estava introvertida na averiguação do orifício queimado no lençol quando ouviu um som bastante peculiar e característico vindo de um canto do seu quarto. Aterrorizada com o pesadelo recente imediatamente olhou em direção à cadeira de balanço feita de vime na qual costumava repousar quando se perdia por entre os parágrafos de um livro qualquer.

A cadeira, que ficava exatamente no mesmo lugar em que estivera sentada a bruxa velha do pesadelo, movia-se lentamente fazendo o assoalho de madeira ranger, como se houvesse alguém a se embalar tranqüilo, apesar de estar completamente vazia.

A moça, de um salto, acendeu o abajur que ficava no criado-mudo ao lado de sua cama e firmou o olhar embaçado: a cadeira continuava a mover-se lentamente.

Nesse instante, vindo do banheiro que tinha sua porta fechada, um chilro sussurrado de vozes misturadas invadiu o quarto, fazendo zunir a cabeça da jovem.

Possuída pelo horror, Marisa tateou o rosto no local onde fora tocada pelo monstro do pesadelo arrepiando-se ao sentir uma chaga indelével em sua face esquerda.

Com o sussurro sobrenatural intermitente, deslocou-se até a porta do banheiro e lentamente forçou-a para dentro, fazendo com que se abrisse num ranger pavoroso.

A cena era horrível!

Dentro do cômodo retangular jazia afogada na latrina com os membros rijos e azulados uma jovem nua de cabelos negros parecidíssima com a irmã que Mariza perdera tantos anos atrás na enchente que arrasara sua família. A anciã diabólica e o homem corpulento de pele lívida e feições deformadas estavam também caídos em decúbito dorsal com os olhos esbranquiçados vidrados no teto. De suas bocas escorria uma repugnante água amarronzada típica das correntes fluviais lamacentas. O líquido espalhava-se por toda a área do banheiro em que se prostravam os três defuntos.

Eram os cadáveres de seus parentes que voltaram do outro mundo trazidos pela inundação do temporal molesto em busca do aconchego familiar perdido para as águas da tempestade maldita que anos atrás assolara o recôndito de seu lar.

Autor: Rodrigo Bispo

08/01/2019

O Veio de Prata

– Hoje posso dizer que já nem me lembro muito bem do que se passou naquela tarde de travessia pelo maldito lago. Aquilo foi há muito tempo e os fiapos de memória custam a se entrelaçarem em minha mente.

– O fato é que foi tudo muito estranho, sobretudo triste. Quantas vidas perdidas!

“Passavam das dez horas da noite quando o estranho homem de cabelos dourados como a palha do celeiro chegou ao mosteiro. Era o jovem ajudante do comissário de polícia, Alfredo. O homem, visivelmente alterado, trazia notícias não muito animadoras. Seu cavalo espumava de cansaço.

Ao que tudo indicava, um fazendeiro havia afogado toda a sua família na correnteza do riacho que borbulhava farfalhante ao pé da pequena colina onde no cume jazia sua casa. Aparentemente o assassino teria perdido a sanidade durante uma caçada em que havia se afastado demais de casa. Voltara maluco da viagem e como estivesse possuído por entidades maléficas, num acesso de inexplicável ira violenta, afogou sua esposa e dois casais de filhos, tratando de esquivar-se do peso da tragédia por atravessar os próprios miolos com uma bala de sua carabina momentos após o ocorrido.

A essa época a imagem dos vilões – como eram conhecidos os aldeões de hoje em dia – não era lá muito boa por essas bandas da cidade. E sempre que eles se envolviam em acontecimentos bizarros como o narrado pelo esbaforido Alfredo, nós do Prelado de Santo Tito éramos convidados para que, por livre e espontânea pressão, fôssemos até o local bendizê-lo e afastar as ‘malignidades’ restadas dos atos de vilania.

A verdade era que a agência de polícia inteira simplesmente paralisava-se de medo ante a mais ínfima menção a todo e qualquer fato que fosse de sua competência e tivesse sido levado a cabo naquelas regiões longínquas dos campos.

Acalmei o tal Alfredo e lhe disse que sairíamos na manhã seguinte para que não se protelassem os desígnios da tão opulenta justiça local.

Assim que o homem foi embora mandei acordar todos no mosteiro. Teríamos um dia cansativo amanhã e não queria membro algum do séquito atrasando os demais quando começasse a jornada.

Tratei de arrumar tudo antes que a madrugada caísse serena sobre o teto de palha do templo.

No plúmbeo amanhecer seguinte lá estávamos nós: dois Anciãos, eu e mais um, quatro Meados – como são chamados os ajudantes eclesiásticos daqueles –, seis guardas monges e treze Pedantes.

As Pedantes eram mulheres ditas puras por terem devotado, senão toda, pelo menos a grande maioria de suas vidas aos mistérios do antigo Culto de Tito. Essas verdadeiras andarilhas podiam caminhar por horas a fio simplesmente recitando versos litúrgicos sagrados. O que, segundo os Ensinamentos Altos, afastava o mal de qualquer espécie. Os homens do séquito que se dirigiam para os locais a serem abençoados fazendo sua guarda iam sempre a cavalo, por razões óbvias, contudo, essas mulheres iluminadas, segundo os costumes de seu credo, somente se deslocavam quando em serviço sacro a pé. E daí o nome de sua Ordem: as Pedantes de Tito.

Bem, o que interessa é que essa chusma de vinte e cinco pessoas estava pronta e preparada para a longa e infausta viagem a tal fazenda da morte.

Partimos às seis da manhã seguinte à visita estrepitosa de Alfredo. Fazia um frio tremendo e tiritávamos enquanto atravessávamos as longas planícies que perfaziam a região.

O ramerrão das Pedantes era monótono e cadenciado, de modo que marchávamos naquele compasso rígido e lúgubre.

Ao nascer do segundo dia de caminhada nos encontramos com um exíguo veio de águas prateadas que corria apertado por entre suas margens escarpadas vindo de uma cadeia de montanhas a oeste. O pequeno córrego deslizava com agilidade e profusão através de seu leito. Imaginamos logo que aquele seria o início do tal riacho onde a família pretérita fora dizimada pela asfixia e nos felicitamos com a esperança de estarmos cada vez mais perto de nosso destino.

Resolvemos então seguir o curso do riacho e nos encontramos ao cair da tarde com uma densa mata de árvores revoltas e cheias de vida. A floresta estendia-se ao sul até onde nossas vistas avermelhadas de cansaço alcançavam.

Preferimos estancar a caminhada na entrada dessa mata e aproveitar a luz solene do ocaso de maneira a facilitar nosso começo de noite na orla do denso florestal.

Passamos uma noite rápida e mais quente que de costume devido à massa verde que guardava de maneira bastante eficaz o calor do astro rei para alimentar as vidas que a compunha.

Por volta das duas da tarde daquele fatídico dia o nosso guia aquoso havia se transformado num caudaloso riacho que se alargara quase instantaneamente tomando toda a extensão do terreno a frente.

Aquilo atrapalhava tudo.

Não havia sequer indício longínquo de que existisse por ali fazenda alguma. Logo, teríamos de dar a volta para alcançar a planície dourada pelas plantações de trigo do outro lado da agora gigantesca massa d’água.

Dei ordem para que prosseguissem e as Pedantes, mecanicamente, sem nem ao menos modificarem o tom de sua antífona, puseram-se a chapinhar nas terras inundadas em torno da lagoa. Aquelas mulheres eram mesmo disciplinadas.

Caminhamos sob o sol escaldante e o mormaço infestado de mosquitos daquele brejo. Nossas sandálias afundavam na lama ribeirinha e acabamos por nos cansar como se estivéssemos a caminhar nas areias do Saara e tanto mais depressa.

Instei a comitiva a parar para matar a sede nas águas cristalinas do riacho e banhar suas faces no líquido fresco de modo a reavivar as forças exauridas pela caminhada extenuante.

Os guardas, que estiveram todo o percurso a cavalo contentaram-se em apenas completarem suas botas d’água. As Pedantes por seu turno ajoelharam-se na terra fofa e alagada e levavam as mãos à água lavando os rostos vermelhos do sol e

matando sua sede. Bebemos todos e nos refizemos um pouco com a frescura da água boa do lago.

O problema é que não tardamos a nos arrepender do tal ato.

Por motivo a nós não revelado, parecia que aquelas águas tão belas e doces tinham-nos envenenado. Minutos após termos retomado a caminhada e enquanto ainda recitava suas preces infinitas uma das Pedantes simplesmente despencou por sobre suas companheiras que em sua frente seguiam.

Ao ver que uma delas havia tombado as outras preladas automaticamente interromperam sua ária sorumbática e voltaram-se todas no mesmo instante para a mulher togada que fremia e virava as vistas espojando na lama como que possuída por mil demônios.

As mulheres agiram tão rapidamente quanto os monges que nos faziam a guarda e num intervalo curtíssimo de tempo a moribunda estava sendo retirada da lama por um punhado de mãos caridosas que lhe dominavam o estertor doentio.

Colocamos a mulher, que agora desfalecera completamente, deitada sob a sombra de uma árvore a certa distância da margem do lago que acompanhávamos. Ocorre que segundos após termos aninhado a Pedante desacordada sob a umbrela do arvoredo, uma outra freira arremessou-se contra o chão coberto de palha vomitando e gemendo de forma terrível. Seus olhos viravam diabolicamente nas órbitas. A ela seguiu-se outra e mais outra, até que em instantes toda a nossa caravana rugia e embolava-se por entre as folhas como um bando de cachorros que rolassem na carniça. Só eu permanecia senhor de mim.

Imediatamente juntei as mãos crispadas tocando o nariz com a ponta dos dedos médios e submergi meu desespero em orações. No vale verdejante e vívido a luz oblíqua do sol poente esvaía-se em raios tépidos e rutilantes. Enquanto que nas sombras daquelas árvores éramos obliterados um a um por aquela força estranha.

De repente senti que me fora arrebatada a capacidade respiratória. Minhas veias incendiaram-se e meus nervos se retesaram completamente. Minha coluna hirta infeccionou-se de imediato e caí sob o arroubo da morte evidente que me convulsionava os movimentos de forma involuntária.

Sofri os rigores destes sintomas por alguns minutos e então finalmente libertei-me das garras da dor e estanquei retorcido e morto sob a sombra dos galhos que ocultavam o céu escarlate.

Até aí as coisas correram dentro de seus limites naturais. Fomos envenenados por alguma substancia oculta na água do lago maldito e em virtude disso falecemos todos. Temos uma situação triste e incomum, mas natural.

O estranho mesmo foi quando abri de repente os olhos sob o luar amarelado que se erguia refletido nas águas turvas e imóveis do lago.

Divaguei por uns momentos com a mente dormente e os pensamentos convulsionados. Um inseto que caminhava em meu rosto atravessou-me a face esquerda causando um formigamento estranho enquanto andava. A sensação me despertou imediatamente.

Joguei o animal pra longe com um gesto rápido e me levantei com dificuldade. Apoiei-me no tronco da árvore sob a qual jazi não sei por quanto tempo. Uma coruja piava.

Olhei em volta desnorteado e pensei divisar ao longe uma das Pedantes caminhando tropegamente a alguns metros de mim por entre a folhagem agreste.

Chamei-a mas minha voz não saiu. Então, como se imitasse a figura titubeante que caminhava tesa em minha frente, dirigi-me com dificuldade na direção dela. Porém, antes que alcançasse a silhueta trôpega, tropecei em algo e me projetei para frente com tal impulso que espatifei-me fragorosamente na camada seca de folhas que cobria o chão úmido.

Com o tombo percebi que estivera até então surdo, pois mina audição voltara. E com ela o alarido da estranha canção diabólica que ecoava por entre troncos sombrios e lembrava nitidamente as preces outrora entoadas pelas Pedantes durante a viagem.

Saltei de lado ao reconhecer o rosto deteriorado de uma Pedante que, caída meio apoiada numa árvore, me fitava com olhos vítreos de boneca. A pobre mulher

estava apoiada no tronco pela base do pescoço torcido em contato com a madeira escura. Sua boca, retesada num movimento obsceno, jazia escancarada e ressequida.

Reconhecendo com dificuldade a fisionomia da irmã deformada, chamei por seu nome e estendi a mão trêmula na tentativa de tocar-lhe as faces acinzentadas. Ao que o cadáver – se posso chamá-lo assim – rigidamente moveu o escalavrado maxilar que escorria a secreção dos vários ferimentos ostentados e num urro grotesco e abissal aparentemente respondeu com voz soturna ao chamado.

Recolhi imediatamente a mão estendida e me afastei daquela figura hedionda instintivamente. Foi quando senti meus dedos tocarem algo úmido e esponjoso. Recuei aterrorizado e percebi que tinha enfiado a mão na goela esfacelada de um dos Meados que seguira comigo desde aquela manhã gelada em que partimos do mosteiro. O homem estava caído de bruços com o pescoço retorcido, de modo que sua cabeça jazia virada ao contrário, tendo pela frente o que antes foram suas costas. Sua cabeça e garganta estavam dilaceradas e sangrentas, mas seus olhos moviam-se sem parar nas órbitas, como se procurassem incessantemente por algo perdido no ar.

Levantei transido de horror e disparei em direção às águas escuras do lago que refletiam serenamente o luar doentio sobre o vale infausto.

Corri noite adentro enlouquecido pelo terror das diabólicas cenas e perseguido pelo odioso hino mortuário que ressoava intermitente. Não sei de onde parti e nem onde havia chegado quando desmaiei de exaustão.

Sei contudo que acordei dias depois no quarto de uma ermida que ficava na encosta da montanha de onde descia o modesto córrego anteriormente citado. O abade disse que me havia encontrado dias antes meio-morto delirante e balbuciando frases desconexas caído por entre os arbusto que crescem nos arredores do poço que guarnece a abadia na encosta.

Contei a ele minha desfortuna. O homem riu-se da história e me deu um livro de orações e um rosário, além de me aconselhar repouso e reflexão. Acatei os conselhos do anacoreta e caminhava pelo pomar artificial que crescia na encosta durante o dia todo orando como uma Pedante. Fazia isso todos os dias. Mas naqueles

tempos estava completamente louco e achava que tinha mais de uma sombra quando saía à luz do sol ou mais de um reflexo quando me olhava no espelho.

Além disso, durante as noites em que a lua era cheia, ouvia a perversa ária distorcida das Pedantes ecoando nos corredores da ermida vinda das trevas externas ao meu quarto. Tinha suores noturnos e ouvia coisas. Algumas vezes cheguei mesmo a ver imagens trôpegas a caminhar no pátio da capela com seus movimentos rígidos dignos da monstruosidade que avistei naquele dia fatídico há meses passado.

Certa manhã porém, enquanto caminhava pelo pomar recitando minhas orações, divisei uma criatura furtiva que se movia por entre as árvores com movimentos mecanizados como os de um pássaro. Uma não, duas.

Meu coração disparou no peito e me escondi atrás de uma árvore próxima. O que significava aquilo? Será que uma daquelas bestas havia encontrado o baluarte da ermida e me seguira pelas veredas do pomar?

Esperei que as aberrações se aproximassem, e quando isso aconteceu, gadanhei um toco seco que estivera caído ao meu lado e avancei no momento em que passavam com seus movimentos demoníacos ao meu lado. Na fúria cega do horror desferi dezenas de golpes até que seus corpos inertes estivessem completamente destroçados. E ai, como ainda me reprovo por tal feito!

Quando dei por mim e larguei do porrete com que esmagara o crânio dos malditos demônios, percebi que eles não eram ninguém menos do que o abade da igrejinha e seu Meado que caminhavam tranquilamente por entre o arvoredo. Dominado pelo desespero e tomado de um arrependimento monstruoso pelo que havia feito, caminhei friamente em minha loucura até o poço onde outrora fui encontrado e sem cerimônias me atirei buraco abaixo.

Isto aconteceu um dia e meio antes da chegada dos agentes de polícia que vieram inspecionar os chamados recebidos em face das lamentações noturnas de que se queixavam moradores das fazendas próximas ao tal riacho onde houvera fenecido toda a minha comitiva.

Como o poço em que me jogara não continha água suficiente para que me afogasse, simplesmente dilacerei-me por completo, quebrei uma perna e um braço e

fiquei como morto naquela água gélida pela totalidade das horas que se seguiram até que a polícia chegasse.

Fui resgatado pelos homens do comissário que me trouxeram de volta para a cidade. E percebendo minha total ausência de razão, internaram-me naquele maldito hospício doentio, morbidamente perplexo e lânguido.

Demorei a me recuperar dos ferimentos que sofrera por causa da queda no poço. E minha mente jamais foi a mesma. Os demônios que se vestiram dos corpos de minha comitiva ainda me atormentam e posso ouvi-los rastejando no corredor entre as celas durante as noites soturnas que passo aninhado nesse cubículo nefasto a que me encontro preso. São criaturas infernais nascidas do pesadelo para assombrar a vivência dos homens. O cântico funesto que se repetia no interior do vale ainda molesta meus dias e noites.

Contudo, em que pese o grande intervalo de tempo, voltei a concatenar frases de modo lógico novamente e hoje consigo exprimir meus pensamentos de maneira compreensível. Por isso na semana passada esteve aqui um homem de cabelos cor-de-palha que dizia ser comissário de polícia querendo me fazer algumas perguntas. Seu nome era Alfredo. E por um breve momento pensei que também o conhecesse, mas me enganei.”

– Por isso estou aqui lhe dando este depoimento, senhor magistrado. E por tudo o que acabo de lhe contar, hoje chamam aquela passagem na floresta de cancela das lamentações.

Autor: Rodrigo Bispo

01/01/2019

A Charneca

Morávamos numa fazenda bem afastada da cidade mais próxima. A gleba fora nosso lar desde que me lembro, tendo nascido lá tanto eu quanto minha irmã Ana. Meus pais eram camponeses e extraíamos a quase totalidade de nossa subsistência da propriedade. Meu pai, homem forte e severo, falecera já havia alguns anos. Fora tolhido do mundo dos vivos por uma febre que levou consigo grande parte dos moradores daquela região no ano negro que marcou sua passagem.

Vivíamos uma vida mansa e sossegada.

Ocorre que um dia minha mãe foi acometida por dores lancinantes que lhe tomaram as forças e enfraqueceram seu corpo antigo. E a isso seguiu-se um acesso de febre fortíssimo que mandou-lhe de vez para o leito de seu quarto escuro.

Desesperado, temendo que a tal “calentura”, como ficou conhecida a febre que ceifara tantas vidas anos atrás, houvesse mais uma vez lançado seus tentáculos soturnos sobre nossa casa, tratei de selar um bom cavalo e, na companhia de nossos dois criados, rumei para a cidade deixando minha mãe aos cuidados de minha querida e frágil irmã.

A estrada para a cidade consistia num caminho pedregulhento e sinuoso que singrava as terras de várias famílias antes de fazer uma curva fechada para sudeste a cerca de duas léguas distante de minha casa, curva esta que ficava bem no dorso de um morro levemente íngreme.

No topo desse morro e em volta da parte da estrada que atravessava a elevação, havia uma pequena floresta de árvores empretecidas que guardava em seu coração uma charneca estéril e fedorenta que embaçava a vista com suas emanações de fumo esbranquiçado e gélido.

A estrada, infelizmente, passava em meio ao tal pântano e a vegetação que o circundava era tão crespa e fechada que não havia hipótese de travessia por outra parte que não as poças de líquido azeviche e borbulhante do charco mal cheiroso.

Devido aos supostos lamentos que se dizia ecoar dos arredores daquela mata durante a noite, o local ficou conhecido como cancela das lamentações pelos moradores da região. Sua fama a precedia e não faltavam histórias, as mais tétricas, sobre toda sorte de

malefícios ocorridos aos infames viajantes que por ali passassem quando em viagem para as urbes.

Meus criados protestaram para que tomássemos outro caminho que levasse à cidade, informando-me que na direção oposta havia outra passagem, mais distante dos medicamentos que salvariam minha pobre mãe, contudo, mais segura.

Recusei liminarmente seus augúrios e lhes disse que poderiam eles mesmos voltarem para casa e se colocarem a fazer algo de utilidade pela minha mãe, em vez de choramingarem feito crianças medrosas em momento tão impróprio. E percebendo minha ira desesperada, apesar de relutantes, não seguiram o conselho.

Sendo assim, prosseguimos os três em nosso caminho.

Adentrando a floresta escura por volta das quatro da tarde, alcançamos a charneca lamacenta pelas dezoito horas daquele dia agourento. E a julgar pela luz escassa que conseguia atravessar a copa das árvores, parecia mesmo que eram dez horas da noite.

Estávamos todos muito assustados com as formas ominosas e sinistras da vegetação que cercava o local. Por vezes meus criados chamaram-me a atenção para os supostos vultos a que se moviam por entre aquela ramagem doentia. Eu lhes censurava os sentidos afirmando que viam coisas na bruma densa que ocupava os espaços exíguos entre as árvores. Mas interiormente guardava certo horror daqueles movimentos diabólicos e apesar da vontade de evadir-me dali o mais rapidamente possível, prossegui estrada à frente afastando o medo e colocando a imagem de minhas amadas parentas em seu lugar.

Desde que falecera meu pai, avoquei-me a responsabilidade pelo bem-estar do que sobrara de minha família, pois era o único filho homem. Chegando mesmo a desistir do casório com a filha do vizinho lindeiro para que pudesse velar pela minha idosa mãe e adorada irmã. E aquele não era o momento mais apropriado para que fraquejasse em meus desígnios.

A visão do pântano era bem mais terrífica que as histórias a seu respeito. E pude sentir nos ossos a gélida sensação de solitude daquele maldito lugar. Era um lamaçal imenso entrecortado por moitas espinhosas que exsudavam fogos-fátuos num aparente padrão bizarro. Havia um cheiro de morte e podridão por toda a orla do alagadiço. Um silêncio aziago somente interrompido pelo gemido de animais desconhecidos imperava naquele ermo.

Corriam historias assustadoras de que um bando de freiras desaparecera no interior da floresta enquanto marchavam em procissão vindas da igreja da cidade. Desde então dizia-se que era possível ouvir as mulheres malditas gemendo suas desgraças quando a noite se amortalhava por sobre as árvores pitorescas.

Sendo-nos impossível seguir caminho devido ao avanço das horas e evidentes dificuldades e cansaço das cavalgaduras, tivemos de parar à entrada das terras úmidas. Os criados arengaram e mais uma vez lhes aconselhei voltar. Contudo, covardes que eram, contentaram-se em resmungar entre si e rezar enquanto montávamos nosso insólito acampamento.

Comemos as provisões trazidas em nossos alforges, encorajamo-nos mutuamente, fizemos uma prece conjunta e nos deitamos em nossos colchões de viagem sob o sereno da noite eterna que nos circundava.

O silêncio era fatal e perturbador. Algumas vezes um fogo-fátuo saltava fugazmente por entre as moitas de modo a quase nos matar de susto com aquela luminosidade doentia amarelo-azulada. Contudo, após algum tempo de vigília involuntária, acabamos sendo derrotados pelo cansaço crescente e adormecemos um após o outro, caindo num sono pesado e merecido.

Acontece que no meio da noite fui acordado por um ruído que lembrava o choro de uma criança ao longe. O lamento ecoava no vazio enegrecido do vale.

Estando mesmo horrorizado pelo som aterrador, levantei-me de um salto e procurei instintivamente pelos criados para acordá-los e me certificar de não estar ficando louco ouvindo sons inexistentes no meio do nada. E qual não foi minha surpresa ao perceber que os desgraçados haviam-me abandonado, tomando rumo desconhecido enquanto eu estava entregue aos caprichos do sono.

Praguejei em voz alta. Gritei pelo nome de um dos serviçais desaparecidos. Não houve resposta. Pelo contrário. Mais uma vez ouvi a voz infantil lamentando e chorando na escuridão.

Atravessado pela compaixão e clemência à miserável alma infante perdida em tão funesto lugar, acendi o lampião que trazia a tiracolo e arqueei a mão por detrás da orelha esquerda aprumando o ouvido. Escutei então novamente o choro que agora parecia vir de uma certa direção ao sul de onde estava. Apanhei a arma que trazia na bolsa do cavalo,

conferi a munição, calcei minhas botas e fui em direção ao som escabroso, sempre atento ao caminho para que não me perdesse em meio àquele inferno alagado.

Caminhei por cerca de meia hora atravessando o charco e ficando atolado algumas vezes, até que cheguei numa espécie de clareira onde jazia uma tapera em ruínas feita de estuque. A casinha estava totalmente às escuras e o som do choro parecia nitidamente vir de seu interior.

Fiquei meio atônito perante a visão perturbadora e enquanto piscava sem entender que sorte de lugar era aquele, me pareceu que uma figura esfumaçada esgueirou-se por sobre o telhado precário da velha tapera, indo introduzir-se na cavidade quadrada da chaminé que se erguia pouco mais de meio metro acima da superfície das telhas.

Persignei-me e toquei o punho da arma em minha cintura, esperando pelo pior. Nesse instante uma claridade bruxuleante surgiu timidamente pelas aberturas nas paredes do aposento e agora sim a voz da criança soou rouca, vindo certamente do interior da cabana. Como que acordado de repente dum sonho aterrador, joguei o medo de lado e pensando na fragilidade da alma que pudesse estar presa naquele lugar nefando, corri em direção à porta da tapera. Chutei-a e ela obedientemente voou para longe emitindo um ruído seco. Então vi sentada no meio do cômodo único uma bela menininha de olhos e cabelos negros segurando uma vela por entre mãos trêmulas.

Seus olhos escuros estavam arregalados e inchados. Lágrimas copiosas brotavam deles inundando sua face branca de expressão inocente e amedrontada.

Aproximei-me rapidamente da criança e percebi, não sem estranhamento, que ela estava muito limpa e asseada, com os belos cachos de seus cabelos amarrados por uma fita amarela na base da nuca. Bem como sua roupa, que estava limpa e alva. Aquilo tudo contrastava muito com a imundície bizarra do local.

Ante minha presença, a garotinha largou a vela que se apagou ao cair no chão e levantou seus pequenos braços em minha direção, como se urgisse por ser retirada dali.

A visão atacou meu coração preocupado e imediatamente peguei a menina nos braços limpando-lhe as lágrimas com a mão livre e perguntando-lhe o nome. Ao que a criança se resumiu a me responder esta frase:

-- A mamãe... a mamãe está morta, moço!

Sua vozinha fraquejava enquanto pronunciava as sílabas e ao término da fala enterrou sua face em meu peito caindo num pranto dolorido.

Eu não sabia o que fazer e estando emocionado com todo o ocorrido, virei-me e tomei o caminho de volta ao acampamento com a pequena pessoa no colo.

Enquanto caminhava inquiri insistentemente a menina sobre quem ela era e como havia chegado onde a encontrei. No entanto, não recebi qualquer resposta às minhas perguntas. Parecia mesmo que a pequena criança não sabia dizer nada além daquela frase exordial.

Chegando ao que antes fora meu acampamento, como chovesse um pouco, arriei o cavalo, juntei minhas coisas e mais que depressa, com o coração apertado de terror e pena, pus-me a cavalgar por entre os charcos do pântano, esporeando desesperadamente o cavalo. Ele que me perdoasse, mas tinha que nos tirar daquele lugar.

Cerca de umas três horas mais tarde havia saído da orla ominosa daquela floresta maldita e estava em direção à cidade novamente. A menininha dormia calmamente encostada ao meu abdome enquanto era sacudida pelo passo monótono e ritmado do cavalo. Agora, com a luz da alvorada refletida em sua tez pálida, pude perceber o quanto suas feições se aproximavam das de minha querida irmã quando mais nova. E por isso senti mais pena ainda da pobre garotinha, como se algo nela me despertasse os sentimentos paternais mais profundos.

Pra que se encurte o relato, basta dizer que cheguei à cidade dois ou três dias depois da aparição noturna no meio da charneca. Lá tratei de adquirir a medicação que motivara toda a minha viagem por meio de um comerciante cego de pupilas esbranquiçadas e cabelo grisalho desgrenhado. O tal vendedor disse-me que conhecia a menina quando ouviu o relato de como eu a havia encontrado. Assumiu um tom grave e afirmou ser a criança um arauto do outro mundo que trazia a mensagem da morte. Refutei as afirmações do homem visivelmente louco e me resignei a lhe perguntar pelo caminho de volta à minha região que fosse diferente daquele que cortava a floresta. O estranho homem silenciou-se por um momento e depois me respondeu calmamente por onde deveria me guiar para que evitasse os perigos da “cancela das lamentações”. Agradeci ao comerciante e lhe dei algumas moedas pela informação. O homem agradeceu e me aconselhou que passasse na igreja antes de seguir viagem e pedisse a bênção da Providência, pois iria precisar.

Esporeei o cavalo e fui embora sem seguir o conselho do louco. Não havia tempo para aquilo. Minha mãe doente aguardava meu retorno, bem como minha querida irmã.

O caminho diferente era bem mais extenso e passada uma semana de viagem avistei os contornos de minha morada ao longe. Trazia a criança encontrada no pântano comigo, pois alimentei grande apreço por sua companhia nesses dias solitários e aviltantes que passamos juntos. Mormente por suas nítidas semelhanças de comportamento com os trejeitos de minha amada irmã quando em idade tão tenra.

Cheguei em casa ao anoitecer. Apeei do cavalo apressadamente e corri em direção à entrada, quando de repente assomou minha mãe ao portal com expressão terrífica e desesperada. Seus cabelos esvoaçados. Suas feições tensas, apesar da saúde que parecia lhe ter voltado.

Ao me avistar a meio caminho da casa correu ao meu encontro segurando as pregas do vestido para que não se lhe enlameassem as bordas. E antes de me alcançar lançou os braços para o alto largando o vestido e vociferando desesperadamente:

-- Oh meu filho! Meu filho querido! Tão feliz está essa mãe em ver-te que por um momento senti meu coração desapertar no peito em virtude da perda recente que se abateu sobre essa família.

Colocando a menina que trazia no colo por sobre a relva molhada, e franzindo o cenho sem que entendesse como podia estar minha mãe tão bem de saúde não havendo tomado medicação alguma, perguntei-lhe aturdido:

-- Ora, minha amada mãe, o que se passa com teu espírito, vez que estais tão bem fisicamente? Eu mesmo já me julgava atrasado em minhas diligências pensando haver ocorrido o pior por causa de minha demora.

Neste instante minha mãe, que agora me alcançara, abraçou-me fortemente e por entre lamentos me informou:

-- Pois é porque tu não sabes que tua irmã feneceu um dia depois de tua partida, vítima da febre. E eu, amortalhada que estava, nada pude fazer que evitasse tamanha desgraça! Os criados que contigo foram jamais voltaram e vejo que contigo não estão. Guardei minhas forças para que pudesse te dar a notícia eu mesma, pois devi minha vida até agora à memória de minha filha falecida.

“Quando despertei e a encontrei morta ao meu lado, roguei aos céus para que tu voltasses a tempo de salvar nós duas e pedi ao espírito de Ana que te avisasse da tragédia, pois eu mesmo não podia fazê-lo.”

“Contudo, vendo que não fui ouvida em minhas orações, suportei o fardo da morte até que novamente te encontrasse e pudesse contar o que se passou.”

“Lamenta-te. Veste-te de luto. Tua amada irmã está morta e jaz desde o dia de sua passagem ao lado de meu leito exatamente como ficara no momento de tua partida!”

E eis que enquanto dizia essas palavras, o fôlego de minha mãe pareceu se diminuir e seu amplexo se arrefeceu em torno de mim, de modo que ao pronunciar a ultima palavra da sentença funérea, esfriaram-se de uma vez suas mãos e caiu morta em meus braços com a rigidez lívida dos cadáveres amanhecidos.

Como estivesse em choque e não pudesse sequer mover um músculo após a seqüência de fatos narrados, fui arrancado, extirpado de minha petrificação sepulcral pela estridente voz infantil que chorava e puxava a barra de minha calça, lamentando a morte de minha família.

Era o agouro daquela menininha tão parecida com a minha finada irmã, a qual encontrei na maldita charneca.

Autor: Rodrigo Bispo