02/02/2015

Ossos de galinha

Oi! Não, você não está atrasado! Por favor, entre!. Hey, não te conheço de algum lugar? Você é um desses repórteres famosos, não é? Você me parece bem familiar. Posso lhe oferecer um pouco de chá ou café, ou você prefere seguir logo com a entrevista? Desculpe-me, não sei como funciona; nunca estive em uma entrevista antes. Eu me afastei dos jornais após o desaparecimento daquelas crianças. Eu não precisava daquele tipo de atenção. Acho que devo começar a minha história contando sobre o local.

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O vilarejo de Tir Gulwyn é bastante tranquilo hoje em dia. Porém, naquela época as coisas eram bem diferentes; nos anos 90 o prefeito recebeu subsídio do governo para construir uma nova escola que atenderia a todas as pequenas cidades e aldeias nos vales ao redor de Tir Gulwyn. Eu tinha acabado de me formar na universidade naquela época – terminei o meu treinamento para ser professor, e estava ansioso para começar o meu primeiro emprego como um profissional, eu estava bastante feliz por ter conseguido uma vaga na nova escola de Tir Gulwyn. Eu poderia finalmente me testar, fazendo algo que amava.

Mas as bonecas mudaram tudo.

Um denso nevoeiro veio das montanhas e deslizou pelo Gulwyn Valley, tomando o lago e se espalhando pela cidade, carregado por uma leve brisa de inverno. O ônibus escolar já tinha chegado, e as crianças se enfileiravam para entrar, tremendo em seus casacos. Folheei o registro e notei que todos estavam presentes, exceto por um garotinho de cinco anos chamado Gavin Lewis. Sua fotografia mostrava um garotinho banguela com cabelo cor de palha, sorrindo. Tentando me conformar que a lista de presença nem sempre seria perfeita, guiei meus alunos para dentro, olhando uma última vez para a rua enevoada.

A primeira aula foi uma maravilha: uma introdução, para permitir que as crianças se conhecessem, em seguida uma leitura em grupo. A leitura foi um sucesso, e logo chegou a hora das crianças se trocarem para a aula de educação física. Eu fiquei esperando no ginásio. Estava bastante frio, e eu estava pensando se realmente deixaria as crianças saírem quando ouvi um o barulho de algo batendo ao vento.

“Olá?” Chamei. Não houve resposta, mas segui o barulho até a entrada do playground, que ficava ao lado da estrada principal para fora da cidade.

Havia um pequeno boneco amarrado nas barras que separavam o playground da estrada. Eu o observei por um momento: um boneco ligeiramente deformado, com o corpo de lã e o rosto feito com um tipo de cerâmica branca. Um emaranhado de fios amarelados estava preso em sua cabeça, e o rosto possuía um vago e perturbador sorriso banguela. O rosto de Gavin Lewis veio em minha mente, e eu desamarrei o boneco. Senti algo estranho ao segura-lo; era mais pesado do que aparentava, e apesar da macia camada exterior, era bastante sólido por dentro.

Eu o levei para a minha sala que estava vazia e o examinei mais atentamente. Havia uma ponta solta de costura nas costas do boneco. Eu puxei e o boneco se abriu em minhas mãos. Ossos, pequenos e secos, se espalharam pela escrivaninha. O som dos ossos caindo na escrivaninha se misturou com o som de passos que se aproximavam pelo corredor. Joguei meu casaco sobre os ossos na escrivaninha no exato momento em que a sala se enchia de crianças ansiosas para a primeira aula de educação física.

Meu coração estava disparado e, apesar do dia frio, percebi que estava suando. O que diabos eu tinha acabado de descobrir?

 “Crianças…” gritei “…hoje a aula será aqui dentro, certo?”

O resultado foi uma série de grunhidos de desapontamento, mas sem objeções.

 Pedi para que um dos monitores tomasse conta da turma, então corri para a sala dos professores. Encontrei o número de telefone dos pais de Gavin nos registros da escola e o disquei. Sem resposta. Senti uma súbita vontade de entrar em contato com a mãe dele, então decidi falar com a diretora. Eu mostrei os ossos, e ela empalideceu.

“São humanos?” ela perguntou. Falei que não sabia. Após um momento de deliberação, ligamos para a polícia. O primeiro oficial a entrar na sala recuou assim que viu os ossos.

“Meu Deus…” ele sussurrou. Seu parceiro pegou um dos ossos maiores para examinar.

“São ossos de galinha.” Ele falou. Perguntei se ele tinha certeza, e ele me contou que tinha crescido em uma fazenda, e já estava acostumado a reconhecer os ossos de alguns animais.

“O que faremos agora?” a diretora perguntou. “É óbvio que isso é algum tipo de ameaça, ou pelo menos uma piada doentia.”

O homem recolheu os ossos restantes e pegou os arquivos de Gavin. Avisaram que a policia passaria a manter uma certa vigilância sobre a escola. Cumprindo com a palavra, outro carro patrulha parou ao lado das grades do playground assim que o primeiro partiu.

O resto do dia transcorreu estranhamente... normal. As crianças não perceberam o horror mudo que transparecia nos rostos de seus professores, mas apesar da tensão no ar, os compromissos do dia se cumpriram normalmente. A última aula acabou e os pais (que não faziam ideia dos estranhos acontecimentos) chegaram em massa para pegar seus filhos. Outros alunos pegariam o ônibus escolar para casa. Fizemos o possível para nos certificar que as crianças voltassem para suas casas em segurança, mas tínhamos receio em contar para alguma outra pessoa sobre o que tinha acontecido. Não queríamos causa pânico, principalmente quando ainda não tínhamos certeza sobre o que realmente estava acontecendo. Fui avisado que a policia me contataria pela manhã para pegar meu depoimento, então voltei para casa.

Verifiquei meu telefone na manhã seguinte, mas não havia nenhuma ligação da policia. Esperei por mais uma hora, então imaginei que se eles estivessem tão desesperados em me contatares, poderiam ligar para a escola.

Cheguei à escolar um pouco mais atrasado que o habitual, porém, ainda pude encontrar alguns pais deixando seus filhos na escola. Isso, juntamente com o carro patrulha estacionado ao lado da escola, me tranquilizou por um tempo. Levei uns quinze minutos para perceber que o ônibus escolar ainda não tinha chegado. O playground estava quase vazio em comparação ao dia anterior. Pus as poucas crianças que já tinham chegado para escreverem alguma história, e liguei para a companhia responsável pelo ônibus. Não, eles não tinham noticias sobre o motorista. Ele provavelmente estava preso em algum engarrafamento à caminho para a escola.

Ok, tudo bem.

Mas eu me sentia incomodado. Algo terrível tinha acontecido com aquelas crianças. Então a dor esmagadora da culpa me atingiu. Eu deveria ter avisado aos pais no dia anterior. Deveria ter contado sobre o boneco. Eu precisava de ar, e acabei indo para o playground.

Então eu ouvi. O barulho outra vez. Eu poderia descrevê-lo como uma cortina sacudindo ao vento forte. Automaticamente, esquecendo a dor da culpa, segui para a direção do barulho.

Nas barras que separavam o playground da estrada, em fileiras organizadas, havia trinta e dois bonecos amarrados. Eu nem precisava olhar os registros. Sempre fui bom em gravar rostos. As crianças que sorriram para mim ontem, sentadas em suas cadeiras, estavam sorrindo para mim agora; rostos congelados em euforia, pendurados nas barras.

Porém, havia algo de estranho em seus olhos: pintados detalhadamente nas cabeças de cerâmica, os olhos mostravam algo diferente. Medo, dor e angústia estavam registrados em seus olhos. As minhas lembranças ficam um pouco borradas após isso. Lembro-me de correr para o carro patrulha, e encontrar dois bonecos lá dentro: ligeiramente maiores que os bonecos das crianças, e vestidos com perfeitos uniformes de policiais.

Entrei apressadamente na escolar, chorando, sem me importar que as crianças me vissem daquele jeito. O que diabos fiz para merecer aquilo? Eu devo ter desmaiado em algum momento, pois acordei em um dos pufes da sala de leitura com um doutor tomando meu pulso. Tentei falar, mas a minha voz não passava de um ruído engasgado. O doutor tentou me tranquilizar, dizendo que as crianças já estavam em suas casas, e que a escola já estava fechada.

Mais policiais já tinha chegado e interditado a área, pensei até ter ouvido o som de um helicóptero. Eu obviamente não estava em bom estado para dar uma entrevista, porém, consegui contar tudo o que pude, antes de ser levado para um hospital. Enquanto me carregavam para uma ambulância, um repórter jogou a câmera em meu rosto e tentou tirar algumas fotos. Um policial o afastou antes que ele conseguisse, e fui posto dentro da ambulância, longe de olhos curiosos.

Isso quase conclui a minha parte dessa história. Larguei meu emprego e fiquei em casa por semanas após o incidente, saindo apenas uma vez. Estava chovendo, e o nevoeiro lá fora parecia ter se dissipado completamente. Eu estava escutando o rádio, quando surgiu a noticia sobre uma importante atualização no caso das crianças desaparecidas. Alguns alpinistas tinham encontrado um ônibus escolar, enquanto subiam uma montanha. O ônibus estava vazio, porém, intacto. Também foi dito que a policia havia interditado uma fazenda, e não deixava ninguém se aproximar.

Sem pensar duas vezes, segui imediatamente para a tal fazenda. O local estava lotado de repórteres, e enquanto eu estacionava, percebi que todos se preparavam para as notícias do meio dia. Outra coisa que percebi, foram as galinhas: várias galinhas corriam pela área. Um policial barrou o meu caminho, enquanto eu seguia para a única casa no local. Sobre seu ombro, vi a equipe forense movendo-se para dentro da casa. O que tinham encontrado ali? “Sinto muito, cena do crime. Você não tem permissão para prosseguir.”

“Por favor” falei “você não entende, preciso saber o que está acontecendo.”

“Contaremos para a imprensa assim que possível, mas até lá, preciso que volte para o seu carro.”

Voltei para casa, mas mantive a televisão ligada. Na maior parte do dia, eles apenas repetiram os mesmos detalhes de pouca importância: que a casa estava desocupada, que ninguém foi preso.

Naquela noite, no entanto, as coisas mudaram. Transmitiram um pequeno vídeo, o qual disseram que havia sido feito por um câmera amador. O câmera estava parado em um corredor estreito, que acabava em uma escadaria que descia. Então ele descia pela escuridão, e por um momento parecia que o filme havia terminado em uma tela preta. De repente, uma luz ligava, revelando um porão, com paredes de pedra, úmidas, assim com o teto e o chão. A câmera passava a mostrar todo o local. O quarto estava cheio de cordas com algumas coisas brancas penduradas nelas. A câmera se aproximava de uma corda, e assim, percebia-se que as coisas brancas eram ossos. Mas aqueles não eram apenas ossos de galinha: não estavam fragmentados como os ossos nos bonecos. Estava bastante claro de quem eram...

Ossos de dedos. Dezenas, talvez centenas, de pequenos ossos, pendurados em cordas como uma cortina macabra. O câmera sussurrava um palavrão, e o vídeo acabava abruptamente.

*

Voltei para aquele local na semana passada. Eu tinha recebido o seu e-mail, me pedindo uma entrevista, e isso me fez pensar. Tantos anos se passaram, e eu queria verificar pessoalmente. Eu sabia que estaria invadindo o local, mas eu tinha que ver pessoalmente. Talvez a policia tivesse deixado passar algo: nunca prenderam ninguém, e nunca encontraram os restos das crianças, então, se eu encontrasse algo, estaria ajudando com as investigações!

O local não era visitado a muito tempo. A porta já estava bastante podre, então consegui arrombar. A polícia havia cortado a energia do local pouco depois dos acontecimentos, então tive que utilizar a minha lanterna, o que reduziu consideravelmente as minhas chances de encontrar algo.

Eu suspeitava que os policiais não tinham verificado atentamente o galpão que havia nos fundos. Aparentemente era um galpão comum: com uma bancada e alguns barris. Abri um dos barris e verifiquei o conteúdo: milho para galinhas, misturado com um tipo de pó branco. Olhei para a bancada, onde havia um almofariz. Dentro, havia o que parecia um osso meio triturado (se era de um humano ou de uma galinha, eu não poderia dizer.)

Eu já estava prestes a sair do local, quando percebi algo embaixo da bancada. Eram bolsas de plástico, daquelas que se usa para guardar documentos importantes. Estavam datadas: de cinco em cinco anos, começando em meados dos anos 70, e terminando em meados dos anos 90. Abri o mais recente e vasculhei seu conteúdo.

Fotografias. Fotografias mostrando crianças em um playground, aparentemente tiradas de dentro de um carro. Outra fotografia mostrava dois policiais dentro de um carro, despercebidos sobre a presença do fotógrafo. A última fotografia mostrava...

…a última era a minha. Não era uma fotografia qualquer. Eu lembrava exatamente de onde foi tirada. Borrada com o movimento, e parcialmente obscurecida pela mão de um policial que tentava afastar um fotógrafo para que eu pudesse entrar em uma ambulância.

Havia outro objeto na bolsa: um boneco. Estava incompleto: o rosto ainda estava pela metade, e ainda faltava um dos braços. Porém, a aparência do boneco me inquietava. Ele parecia bastante familiar, das vestimentas marrons ao estúpido penteado Teddy Boy da época.

Era o meu boneco.



Bom, enfim, estou feliz em ajudar. Acho que se relembrarmos o incidente com frequência, podemos, mais cedo ou mais tarde, encontrar alguma nova informação. Só espero que a parte do arrombamento não me cause problemas. Não publique essa parte, tudo bem? Ótimo. O que mais você deseja? Uma fotografia minha? Claro, tudo bem. Vai em frente.

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7 comentários:

  1. Interessante, interessante... nada demais: uma escrita simples, nada maestral, numa condução casual. O fim, no entanto, alegra um tanto o leitor. A história poderia ter sido mais interessante de fato, ter mostrado mais coisas dela. Mesmo assim, gostei, uma ótima creepypasta.

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  2. Mals, adoro fazer bonecos com osso de galinha :/

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  3. Me lembrou um livro que eu tenho "Sangue de Lobo". O assassino mata as mulheres e deixa na cena do crime bonecas de porcelana parecidas com elas (principalmente o cabelo)...

    Ótimo livro.. Ótima creepy

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  4. Nossa, cara... Super inteligente esse fera...

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  5. O repórter é o assassino. Muito boa.

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