07/05/2020

Todas as manhãs, ela está alimentando o seu ódio por mim, lentamente...

Ela encontrava-se na pia, de costas para mim, mexendo em alguma coisa que eu não conseguia enxergar por causa da distância. Mesmo perto o suficiente, eu estava sentado e não dava para me levantar no momento. Ao seu lado, na parte esquerda, estavam eles. Eu poderia jurar que estou ouvindo o barulho que sempre fazem. Não sei se é na minha cabeça somente, só sei que estão movimentando-se para todos os lados. Fiz um ruído educado com a minha garganta, colocando a mão na boca para chamar sua atenção. Era mais ou menos um "oi", então ela olhou por cima dos ombros na minha direção, nem sequer observou no meu rosto, apenas reparou o som que eu fiz. A minha esposa ainda estava com o mesmo ódio por causa da minha traição.

Virou para minha direção e caminhou até a mesa, colocou alguns biscoitos de chocolate com coco por dentro, ajeitando com cuidado em um pratinho branco. A xícara com café estava quente e a fumaça subindo em um movimento de onda para os dois lados, desaparecendo logo depois da altura da minha cabeça. Sentou-se logo à frente, um pouco distante, e colocou um daqueles tabefes na boca, quebrando ao meio em uma mordida rápida. Olhando para o lado, na direção da janela, o sol estava entrando aos poucos porque estava iniciando uma manhã.

Eu nunca soube o que falar nesses malditos segundos que nós estávamos um na frente do outro. Imagino que desculpas não vão ajudar depois de tudo que eu fiz. Nessas manhãs, a minha esposa apenas parece fingir que eu não estou ali. Desde o começo disso tudo, em nenhum momento olhou para a altura do meu pescoço ou se dirigiu diretamente para minha pessoa, mas eu sinto a explosão de ódio dentro da sua cabeça como um vulcão em erupção. O cheiro de café, o aroma forte da cafeína, sem muito açúcar, deixa-me irritado fazendo jogar a xícara próximo dos seus pés, fazendo-a explodir em vários pedaços, e aquele líquido quente espalhando-se e deslizando lentamente fazendo a fumaça ficar menor em cada segundo. Ela suspira um pouco quando percebe o que eu fiz e contínua ignorando-me. Isso me deixa bastante irritado.

Abro os meus lábios para pedir perdão, não sei quantas vezes eu já fiz isso e parece que não existe som na minha boca. Sinto uma dor pressionando os meus pés, principalmente no esquerdo, impedindo-me de tomar uma atitude de homem e se levantar. Ela pega um pano, que estava na porta da cozinha, e passa no chão, cortando o seu dedo do meio por um dos pedaços de vidro. Para estancar o sangramento pequeno, coloca na boca chupando o sangue e despreza o seu marido observando, jogando seus cabelos para trás que cobriam seu rosto. Nesse momento, a única coisa que está dando atenção, na verdade, as únicas coisas são moscas voando ao meu redor, bebendo um pouco do líquido que ainda sobrou naquele lugar que a xícara de café morreu e, algumas mais ousadas, ficam alimentando-se dos biscoitos que eu não comi, naquele mesmo prato alabastrino com detalhes azuis em cima da mesa.

Ela deixou nossas manhãs com cheiro de podridão no lugar. É incrível como eu tento parecer calmo, mas eu estou gritando desesperado como uma vítima de um assassino ou uma mãe observando o seu filho morto em um acidente. Conheço bem a mulher que eu casei, sei quando ela está irritada, você não vai querer estar próximo o suficiente nesses momentos de fúria. Antes de tudo isso, nossos amanhecer resumiam-se em brigas constantes, principalmente na parte da manhã e quando eu chegava tarde da noite; após encontrar mais uma e mais uma, várias outras garotas do escritório. Ela sabia de tudo de alguma forma, descobriu as traições. Pedia de forma patética e implorando o meu amor, eu já não estava dando-lhe mais prazer, muito menos sendo carinhoso como fui no passado. Sussurrei baixinho que ainda lhe amava. Ela levantou-se rapidamente no momento em que estava girando aquele pano em círculos no local onde o café foi derramado. Utilizou as suas mãos para jogar o prato que estava com os biscoitos ao nosso lado. Mirando nos meus olhos, depois de muito tempo, eu senti tanto ódio que parecia que eu seria agredido no rosto por um tapa de revolta...

Nada aconteceu, recuperou a sua postura e saiu. Sentou-se depois que foi para o terraço e limpou aquele pano sujo. Calmamente, colocou dois cubos de açúcar dentro do café que ainda estava fumaçando para terminar sua refeição. O último biscoito foi colocado na sua boca, e ela ficou mexendo a xícara com a colher, movimentando para um lado e para o outro. Cruzou os seus pés e ficou enrolando o seu cabelo da frente com o dedo cortado pelo vidro. Naqueles segundos tudo parecia ficar normal, porque se encontrava cada vez mais serena e calma. A nossa situação aparentava uma manhã qualquer, no entanto, não era bem isso que estava acontecendo. As moscas continuavam nos observando e fazendo um barulho irritante, principalmente nos meus ouvidos e eu contorcendo-me em agonia por dentro.

A última gota da cafeína desapareceu na sua boca, e ela foi até a pia lavar os pratos. Eu fiquei observando tudo e, sinceramente, desejei dizer algo, implorar por perdão. Não adiantou de nada porque as palavras simplesmente se desintegraram no meu cérebro como se, apesar de tudo que está acontecendo, eu fosse o ocupado. Imaginei uma maneira de fazer com que ela me deixe em paz nesse casamento, essa união amorosa que ainda está tentando ligar e culpando-me todas às manhãs. Palavras, letras, etc; rapidamente escapam do meu alcance, deixando-me sendo ocupado e vulnerável para tudo isso.

Finalmente voltou para mesa, estava com a caixa. Eu jurava, como no início dessa manhã, que estava ouvindo eles movimentando-se para todas as direções. Os seus corpos pequenos, nauseantes e famintos desejam consumirem-me. As moscas felizes ou as suas mães apreciando tudo. Nesse momento, eu nem sabia se eram novas ou fruto que saíram da minha perna esquerda putrefata, vítima da gangrena. Pegou o meu outro pé e enrolou um arame, dando cinco voltas apertadas. Eu pude sentir a carne da minha pele sendo cortada e logo aplicou seringas, uma atrás da outra, para que o sangue seja interrompido e a podridão comece do outro lado. Eu senti minha perna formigando e parecia que estava ficando inchada mais cedo do que a outra.

No mínimo, eu deveria estar desesperado e chorando vendo aquelas coisas consumindo-me aos poucos. O seu comportamento era realmente apavorante por conta da naturalidade e a frieza que fazia tudo. Pedi desculpas e disse que ainda estava apaixonado. Mas, minhas palavras eram tão desprezíveis que eu observei os seus lábios rachando para o lado. Sentindo-me mentindo, mais uma vez, ela cuspiu tão baixo que não dava para ouvir com muita clareza essas sentenças: "você consumiu todo o amor que eu te dei e as coisas que fiz pelo nosso casamento, agora é minha vez de consumir você aos poucos". Voltando para sua postura, arremessou aquelas larvas em cima do meu pé, que estava começando a ficar roxo. Sentou-se mais uma vez próxima de mim e começou a virar as páginas do jornal, enquanto as moscas estavam aproximando-se para colocar mais ovos, e os frutos de outras saboreando o meu corpo lentamente.

Autor: Sinistro

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