18/06/2020

A mudança é completa

Olhos muito separados. Nariz grande demais. Cicatrizes de acne. Dentes tortos. Corpo magro e flácido. Todas essas características me renderam vários apelidos na adolescência, e consequentemente, uma baixa autoestima. Eu poderia dizer que precisar me olhar no espelho seria o ponto baixo do meu dia, mas isso nem se compara a ver o feed do Instagram, ou assistir minhas colegas de trabalho se maquiando no banheiro. Até outdoors me deixavam com um peso na alma, com seus rostos perfeitos e sorrisos alinhados.

Tais pensamentos deveriam desaparecer quando Jonas, um homem bonito e um dos jovens mais bem sucedidos do meu trabalho, me convidou para sair, mas, por Deus. Tudo só piorou. Mesmo depois dos inúmeros encontros, do pedido de namoro e do brilhante fio de ouro que envolvia meu dedo anelar, eu ainda me sentia indigna de estar com ele. Sentia minhas costas queimarem com os olhares maldosos dos nossos colegas, escutava cochichos e risadinhas quando estava com meu noivo. Todos pensavam a mesma coisa: ele é demais para ela. Olha que mulher feia, que magia negra ela fez para prender esse homem?

Bem, eu não era a única da relação que me sentia insegura quanto a minha beleza, ou melhor, a minha falta dela. Jonas poderia me amar pelo o que sou por dentro, mas não era cego e nem bobo, sabia muito bem o que as pessoas falavam por trás. E o pior, ele se importava. Eu consegui ver o constrangimento estampado em seu rosto quando me apresentou para seus pais. Jonas nunca postou fotos nossas, e quando alguém que não me conhecia se aproximava, eu era apenas apresentada pelo nome, nunca era “essa é Elisa, minha noiva”.

Dito tudo isso, tentei não ficar ofendida quando ele me disse que conheceu alguém. Não uma mulher, mas sim um homem, mais especificamente um cirurgião plástico. “Sem pós-operatório, em apenas um mês você será uma nova mulher. A mudança é completa”, prometia o anúncio mostrado por Jonas, que estava totalmente entusiasmado.

No dia seguinte estávamos na sala de espera do Dr.Dario, somente nós dois e uma recepcionista deslumbrante que não deixei de invejar. Minutos depois sua voz monótona chamou meu nome e fui encaminhada para uma sala inteiramente branca. Dentro dela havia apenas uma espécie de balança digital e uma poltrona cheia de aparatos tecnológicos com um capacete estranho. Me lembrava um pouco uma cadeira elétrica.

“Você precisa ficar totalmente nua, vamos tomar todas as medidas do seu corpo. A mudança é completa” uma voz masculina veio de um canto da sala, porém, não havia ninguém exceto eu. Me despi, tremendo com o frio do lugar climatizado e também com um medo repentino e quase instintivo que se abateu sobre mim. Sinais de alerta pipocaram em meu cérebro, mas permaneci onde estava.
A próxima instrução veio logo após minha última peça cair sobre meus pés, me dizendo para subir a balança. Me senti desconfortável ao imaginar que alguém estava me vendo de algum lugar e não pude deixar de cobrir minhas intimidades, mas não questionei a natureza das ordens. Eu passaria por qualquer coisa para melhorar minha aparência patética.

Ao colocar os pés na balança os senti esquentar. Uma onda de calor subiu por todo meu corpo e as luzes na sala piscaram algumas vezes. No pequeno monitor do aparelho passaram vários números e logo percebi que não se tratava apenas do meu peso, mas sim de todos os valores correspondentes às minha medidas. Minutos depois a temperatura caiu e o monitor tornou a ficar vazio.

“Pode colocar suas roupas e aguarde uma de nossas funcionárias para a coleta” proferiu a voz. Eu apenas obedeci cegamente, imaginando que a “coleta” seria feita naquela poltrona estranha. Depois de me vestir, me aproximei dela, a examinando e imaginando sua função.

- Não toque em nada. – eu pulei de susto quando uma garota loira apareceu atrás de mim. Trajava vestes de enfermeira pornô, vestido curto, lábios vermelhos e decote avantajado. Arrastava um carrinho de bandeja coberto com pano branco. – Vim fazer a coleta.

- E a poltrona? – perguntei, e a expressão dela ficou mais sombria.

- É para a próxima etapa, daqui a um mês. – ela afastou o pano do carrinho e pude ver uma seringa, ampolas, garrote, algodão, álcool, um saco plástico e uma tesoura.

Ela fez o processo básico de coleta de sangue: apalpou minhas veias, apertou o garrote em meu braço, desinfetou o local da punção e montou a seringa. Meu sangue encheu três ampolas e quando achei que estava acabado, a enfermeira habilmente cortou uma mecha do meu cabelo e depositou no saco plástico. Logo depois de vedá-lo, a mulher se retirou e disse que eu podia fazer o mesmo.

Comentei com Jonas, com amigas, com meus familiares, e todos acharam muito estranho todo o procedimento, mas diziam que eu não podia reclamar, o que relutantemente concordei. Além de ficar linda ao final do processo, não era eu que ia pagar. “Você tem sorte de ter o Jonas”, disse minha mãe, e eu apenas assenti. Eu era mesmo muito sortuda.

Um mês se passou com a lentidão de um conta-gotas, e lá estávamos, eu, Jonas e a recepcionista. Fui informada que o procedimento duraria um dia inteiro, e que depois que eu entrasse na sala meu noivo seria dispensado. Nada de acompanhantes. Fui chamada e recebi um beijo de Jonas.

- Mal vejo a hora de ver você de novo. Não se preocupe, você ficará linda. – ele sussurrou enquanto nos despedíamos. Eu forcei um sorriso porque, no fundo do meu peito, eu sabia que só queria que Jonas pensasse que sou linda agora.

Entrei na mesma sala de um mês atrás, mas agora tinha companhia. Duas enfermeiras, com aquele mesmo uniforme que qualquer um encontraria em um sexshop, e um senhor careca, alto e de jaleco, segurando um carrinho metálico coberto com um pano. Uma das mulheres segurava um bastão metálico e a outra uma bola de ferro.

- Eu sou Dr.Dario. – ele se apresentou e reconheci a voz que ditava o que eu fazia na primeira vez que eu estive ali. Eu abri a boca para fazer o mesmo, mas Dario levantou um dedo e tocou meus lábios – Silêncio. Apenas tire a roupa.

E mais uma vez obedeci sem questionar, porém bem mais constrangida do que da última vez. Uma terceira mulher (acho que não preciso mais dizer que todas ali eram perfeitas) apareceu apenas para recolher minhas vestes.

Dario apontou para a poltrona e eu me sentei. Não pude deixar de me sentir como um cão adestrado, com um mestre sem afeto e que não parecia se importar com minha opinião. Ninguém me perguntou como eu gostaria de ficar, apenas disseram que seria mudança completa, e que ficaria linda, como se fosse um maldito veredito. Tão certo quanto o nascer e o se pôr do sol.

Logo que me sentei, a poltrona se reclinou como um assento de carro. Senti um metal envolver meus meu braços, pescoço e barriga. Tentei mexê-los, mas todo esforço era em vão, até respirar era difícil. Somente minhas pernas estavam livres, mas essa liberdade durou pouco. Meus joelhos foram separados e minhas pernas foram abertas quase em um espacato. Logo todas as minhas juntas estavam imobilizadas.

O fato de estar totalmente nua e em uma posição tão vulnerável e constrangedora me apavorou. Comecei a gritar para me soltarem, mas minha voz foi calada quando empurraram a bola de metal em minha boca. Engasguei com o objeto e com minha própria saliva, o que só fazia meu pânico aumentar. O bastão que uma das enfermeiras usava encostou em meu peito nu e senti uma onda de choque percorrer meu corpo.

- Calma, Elisa. Você ficará perfeita. A mudança será completa, só precisamos de uma parte significante sua. Na verdade, é quase tudo o que torna essa sua casca imperfeita a Elisa, a noiva do Jonas. Não se preocupe, essa parte continuará viva, mas não aqui.

Eu ouvi, porém não compreendi o que Dario disse. Tudo o que eu compreendia era minha dor, até ela simplesmente sumir quando o capacete foi colocado em mim. Era como se minha mente se separasse do corpo e eu levitasse. Logo minhas memórias do dia passaram diante dos meus olhos. E as memória de ontem. E da semana passada. Do mês passado. Do ano passado.

Eu vi quando conheci Jonas. Eu vi quando minha vó morreu. Eu vi quando fui aceita no primeiro emprego. Eu vi as festas de faculdade as quais eu sempre estava no canto. Eu vi meus colegas de escola me chamando de “Garibalda”, igual a garota no seriado. Eu vi meu primeiro cachorro. Eu vi meu pai antes de nos deixar por uma nova família. Eu vi minha primeira queda de bicicleta. Eu vi as Barbies que eu tanto desejava ser. Eu vi tudo. E então as memórias pararam de girar na minha cabeça e eu retornei para a dor.

- Está completo, senhor. – disse uma voz feminina. O capacete foi retirado.

E começou. Dario se colocou entre minhas pernas e abriu o jaleco, revelando sua nudez. Eu tentei chamar por socorro, implorar por clemência, mas a bola de metal me impedia. Só me restava a dor e choro. Senti grampos, agulhas, facas. Alicates puxaram meus dentes e dedos. O médico revezava seu membro e o bastão de choque para me ferir por dentro. A pele de todos os cantos do meu corpo foi esfolada, e eu já não poderia contemplar o resultado porque estava sem olhos. A serrote arrancou meio seio esquerdo e minha perna direita, e a furadeira traçava seu caminho tortuoso em minha costelas. Apenas o choque me acordava quando perdi sangue demais para estar consciente. Já não precisavam me silenciar, e então tiraram a esfera metálica um pouco antes de cortarem minha língua. 

Rezei para cortarem também minha garganta, mas só o fizeram quando meu estômago estava aberto.
E finalmente, o silêncio. 

...

Eu acordei esperando sentir dor depois dos procedimentos estéticos – que não faço ideia de quais sejam – e sorri ao lembrar que não havia pós-operatório, então eu estava novinha em folha. Era como acordar de uma soneca a tarde, totalmente revigorada, e não de uma transformação que durou 24 horas. A minha cama era grande e confortável, e uma das paredes era revestida por um enorme espelho.

Quase gritei ao ver a mulher perfeita que eu tinha me tornado. Removi a roupa da clínica para inspecionar inteiramente o trabalho feito. Não havia cicatrizes, nem cirúrgicas, nem de acne. Era tudo tão natural que, apesar do meus seios e glúteos estarem bem maiores e redondos, não parecia haver silicone abaixo da pele. Pelo reflexo do espelho notei um armário atrás de mim que continha um vestido novo ainda etiquetado, sapatos dentro de uma caixa perfumada e um pequeno ramalhete de rosas brancas com um bilhete.

- Elisa Andrade? – uma voz feminina me assustou, e eu tentei cobrir meu corpo com as flores. Era a mesma enfermeira que coletou meu sangue e cabelo há um mês. Ela estava sorrindo. – A senhorita está bem? Podemos lhe dar seu almoço, ou você pode ir com o senhor Goulart.

- Ah, o Jonas já está aqui? – perguntei, e ri com a ideia de que pela primeira vez alguém parecia estar sendo gentil comigo por aqui. A mulher disse “sim” para minha pergunta. – Então eu quero ir com ele. Essa roupa foi ele quem trouxe?

- Cortesia do Dr.Dario. Vou dar licença para você se arrumar, estarei aqui na porta lhe aguardando. A propósito, meu nome é Clara.

Quando terminei, a mulher me guiou por um corredor longo e escuro. Consegui ouvir vários choros femininos, vozes de mulheres adultas que soavam como as de bebês aprendendo a falar. Achei melhor não perguntar nada, até porque Clara parecia nervosa. Andava cada vez mais apressada e me puxava por uma das mãos. Minha mão livre envolvia as rosas e o bilhete.

Atravessamos uma porta larga e paramos naquela mesma sala que estive dias atrás, quando era uma mulher muito distante da perfeição que me encontrava atualmente. Várias enfermeiras estavam ao redor de algo naquela poltrona que eu estava sentada ontem. Senti minhas pernas amolecerem ao ver que era um cadáver ser pernas, braço ou cabeça. As mãos enluvadas das mulheres separavam os órgãos do abdômen aberto.

- Calma, querida. Em todo hospital há cadáveres, e este está sendo estudado. Dr.Dario é bem rigoroso com nosso treinamento. – pude ver lágrimas se formando no canto dos lindos olhos de Clara – Todas nós passamos... Por isso. Tudo pela perfeição.

Antes que eu pudesse refletir sobre o que vi e ouvi, saímos da sala e fomos recebidas por Jonas. Seus braços me envolveram e nossos lábios se juntaram. Pela primeira vez vi que não havia vergonha pairando sobre ele enquanto os outros nos observavam juntos, e isso me deu uma mistura de tristeza pelo passado e satisfação pelo presente, enquanto ouvia elogios sendo sussurrados ao meu ouvido. Seus olhos foram direto às rosas que eu segurava e pode notar um pouco de ciúmes em sua expressão. Ficou tão óbvio que até Clara percebeu.

- É apenas um mimo do meu chefe. Todas as pacientes recebem o mesmo. – depois de ouvir isso, a carranca de Jonas suavizou.

- Amor, vou acertar o pagamento com a recepcionista. Vá para o carro e me espere. – meu noivo me entregou as chaves e se voltou para o balcão, não sem antes me dar mais um beijo luxurioso. 

Estava tonta de amor e desejo quando cheguei ao carro. Sentei no banco do passageiro e lembrei de quando estive na poltrona antes de tudo apagar quando o capacete pousou sobre minha cabeça. Senti um arrepio no meu corpo, mas meu reflexo no retrovisor me pôs de volta a realidade. 

Um pouco antes de Jonas tomar seu lugar, um pouco antes de irmos para o apartamento novo o qual meu noivo pretendia transformar em nosso lar, um pouco antes do casamento maravilhoso e do nosso filho que, por sorte, é a cara de seu pai, lembrei do bilhete que acompanhava as flores. Pude examinar os presentes do Dr.Dario melhor, e quando abri o envelope eu pude sentir o cheiro.

O cheiro de sangue.

Digitais vermelhas tingiam o papel de carta retangular. O odor rançoso empesteou o veículo e minha cabeça girou. As manchas só não me assombraram mais do que as palavras escritas por Dario, e não deixei de escutar sua voz em minha cabeça... Para sempre.

“Querida Srta.Andrade. 

Aprecie meu trabalho. Nosso trabalho. Eu cumpri minha promessa. Eu fiz a mudança. E a mudança é completa.”

Autora: Gabrielle Lima

16 comentários:

  1. Pouha
    Gostei, raramente algo faz eu me sentir desconfortável como essa creepy (isso foi um elogio)

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  2. Incrível! Fazia tempo que não lia uma creepy tão boa, me fez realmente passar mal durante a leitura, e a escrita também está ótima! Parabéns à autora.

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  3. n entendi o final
    Oq q houve?

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    1. Meio q Ela foi mutilada pra mudarem ela de corpo. Ela gostou do resultado mas ficou traumatizada com a experiência, pq como o Doutor disse: "a mudança é completa" e ela realmente nunca mais será a msm mental e físicamente

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    2. Ahhh pdc, essa de q ela foi mutilada e trocaram o corpo eu saquei mas não tinha me ligado que também mudaram a mentalidade dela

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    3. Isso foi meio q um efeito colaterais pq acabou sendo uma experiência traumatizante por todas q passaram por aquilo

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    4. Ela morreu. Fizeram um transplante da mente dela pra outro corpo, a pessoa que ela era antes não existe mais. Oq aconteceu na sala branca foram eles desmembrando a verdadeira personagem, matando ela, e depois foi narrado as memórias dela em outro corpo.

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  4. eu nao entendi a parte que ela faala que a cabeça girou

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  5. Muito muito boa, mas meio que fiquei sem compreender o final.

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  6. Muito legal parabéns escritor pelo seu trabalho.

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  8. eu não entendi nada. Se o corpo dela estava morto na poltrona, quem era essa outra?

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