25/02/2020

Eu achava que tinha aprendido a lidar com a solidão

Isso aconteceu comigo tem já mais de um ano e, na maior parte dos dias, eu não costumo ficar lembrando. Mas alguns fatores como ficar sozinho em finais de semana chuvosos, em que tudo parece mais solitário, desencadeia essas lembranças com mais vivacidade na minha memória. Eu sempre fui interessado nesses relatos que contam pela internet, às vezes sem nem saber se são histórias verdadeiras, mas é algo que eu procurava como uma droga, que por mais que me causasse medo e aflição, depois que passava o efeito eu repetia. Mas me ocorreu que eu nunca relatei nenhuma experiência minha, talvez por não achar que isso fosse trazer algo de bom pra ninguém. Por outro lado, acho que liberar essa sensação que eu estou sentindo agora possa me fazer melhorar, além disso quem for ler isso pode nem acreditar no que eu experienciei, como eu mesmo já fiz muitas vezes com os relatos de outras pessoas.

Então... Eu moro num alojamento estudantil, num apartamento com sala que também é cozinha, banheiro e três quartos, que na época só tinha eu morando. O prédio costuma ter vida durante o semestre, apesar da correria da vida de estudante, minha e dos meus vizinhos, mas durante as férias a maioria vai pras casas das famílias descansar. Mas minha família mora longe e eu não tinha dinheiro pra sair da cidade nas férias, então meus dias se resumiam em leituras, chás e eventualmente algum baseado. A solidão não costumava me afetar tanto e o medo, que eu costumava sentir desde a infância, eu já aprendera a lidar com ele. Era o que eu achava.

Eu, tendo ficado o último daquela rodada de estudantes que passaram pelo apartamento, fiquei com as chaves dos dois quartos que ficaram vagos (apesar de nenhum dos dois antigos ocupantes terem saído por terem terminado o curso, mas simplesmente foram morar em outro lugar). E só passariam a ter moradores novos no começo do outro ano. Mas eu deixava as chaves em um vaso de madeira que ficava em cima da geladeira, na sala, nem pensando na existência dos quartos, que ficavam trancados na maior parte do tempo.

Uma noite eu acordei pra ir ao banheiro de madrugada, no escuro mesmo, como de costume, e notei – através das frestas dos cantos da porta – que a luz de um dos quartos estava acesa. Na hora eu senti um calafrio, andei depressa pro meu quarto, acendi a luz e tranquei a porta. Naquela noite eu dormi de luz acesa.

No outro dia, de manhã, criei coragem e destranquei a porta daquele quarto. Abri, e nele tudo estava como eu me lembrava: um colchão no chão, uma escrivaninha e um guarda-roupa vazios, janela fechada e um leve cheiro de mofo. Mas a luz estava apagada! Lancei a mão no interruptor e nada, foi então que eu olhei pro bulbo e NÃO TINHA LÂMPADA! O calafrio voltou com intensidade maior, então eu tranquei a porta daquele quarto o mais rápido que pude e saí do apartamento; fui andar na rua. Mas uma hora eu teria que voltar praquele lugar. Meus amigos que moravam por ali na vizinhança estavam todos "viajando" pras suas casas de verdade. Eu teria que enfrentar aquele medo sozinho mesmo. Antes de anoitecer, então, eu fui pro apartamento, abri a porta do outro quarto vago, não sem antes conferir se ali tinha luz. Tinha, e eu a acendi, assim como as luzes da sala, do banheiro e do meu quarto, deixando trancado só aquele sem luz. Foi assim que eu consegui colocar a cabeça no travesseiro à noite. Mas não significa que eu dormi. A partir de um certo tempo que eu estava deitado, começou a garoar fininho (chuva sempre me traz uma sensação gostosa e estranha ao mesmo tempo, não sei explicar). Fiquei prestando atenção ao som da chuva, até que quase peguei no sono. Quando a porta do quarto que ficou aberto começou a ranger. "Deve ter sido o vento", pensei. Mas as janelas estavam todas fechadas. Então, ouvi um trovão e a chuva engrossou, tornando qualquer rangido posterior que acontecesse menos audível. Minutos depois, começou a me dar vontade de mijar. Comecei a cantar mentalmente alguma música alegre e criei coragem pra ir ao banheiro em meio ao som das trovoadas. Quando tô no meio do meu alívio, ouço um estrondo bem mais alto – um raio por perto – e, segundos depois, cai a força. Não me saía mais nem uma gota de xixi, mesmo eu ainda não tendo terminado. Fiquei ali, parado no escuro, sem reação. Até que eu comecei a ouvir o barulho da fechadura da porta da frente (o apartamento é bem compacto, então dava pra ouvir). Me tranquei no banheiro, no escuro, e não emitia nem som de respiração, embora eu soubesse que quem/o que quer que estivesse mexendo na porta soubesse que eu estava ali. Tentei me tranquilizar imaginando que poderia ser "só" um ladrão. Eu não tinha nada de valor e pouco que tinha faria falta, mas eu não estava em condições pra impedir alguém. Foi o que eu disse pra mim mesmo, enquanto os passos eram dados dentro do apartamento, como se o sujeito estivesse fazendo uma ronda. Deve ter entrado no quarto aberto e no meu – que também estava aberto. De repente, silêncio novamente. Minutos depois, a luz voltou.

Saí do banheiro com um rodo na mão, conferindo cada canto, embora com medo de realmente achar algo. Mas, pra minha surpresa, nada. A porta da frente tava trancada e a fechadura intacta. O quarto trancado eu não tive coragem de abrir. Depois da inspeção eu corri pro quarto, tranquei a porta e fiquei com a luz acesa embaixo da coberta até amanhecer.

Quando me levantei é que me dei conta de que o apartamento estava com o chão todo enlameado, como se alguém tivesse pisado logo depois de ter sujado os sapatos com muita lama. Mas não dava pra distinguir formas de pegadas nem nada. Pois bem, tive que limpar tudo. O curioso é que os rastros iam na direção do quarto que ficou trancado, e dava pra ver que a lama continuava dps da porta. Mas eu não lembro de ter ouvido nenhum barulho da fechadura desse quarto. Achei estranhíssimo e fui abrir a porta, não sem pegar o rodo antes pra usar como arma caso fosse necessário. Abri. As mesmas coisas, o mesmo bulbo sem lâmpada, mas o colchão também estava TODO enlameado. Aquilo dormiu ali? Eu já não sabia o que fazer. Retirei o colchão do apartamento para que não mofasse ali e fizesse tudo ali dentro feder. Estava pesado e bem úmido, e mais morno do que eu esperaria de um colchão cheio de lama. Mas peguei ele da mesma forma e o coloquei no corredor do andar. Terminei a limpeza e saí como de costume pra ver um pouco de vida fora daquele cubículo. Pensei em chamar a guarda universitária, mas me chamariam de desvarido. Mas eu só conseguia pensar nesses acontecimentos. Voltei no fim da tarde pra repetir o ritual, já achando que eu estava começando a ficar louco, como muitas pessoas já ficaram nesse alojamento. "Efeito colateral da maconha", foi o que eu ouvia de muitos que eu considerava caretas. Mas joguei fora qualquer ponta de beck que eu tivesse guardada, na tentativa de voltar pra realidade. A noite chegou e eu trancado no quarto. Tinha improvisado um penico pra não ter que ir ao banheiro de madrugada. Naquela noite não ouvi nada. Nem na seguinte. Quando consegui começar a ter uma noite de sono, acordei com um estrondo de porta batendo com MUITA força. Era de um dos quartos, não sabia dizer qual. Meu cu trancou. E não parou. Ouvi as janelas sendo abertas com violência, depois sons de coisas caindo no chão na sala. Panelas, talheres, potes de plástico. Pratos quebrando, pano rasgando. Me enfiei embaixo da cama e chamei a polícia aos sussuros, apesar de ter sido recomendado pelos colegas moradores a não contar com a PM. Só saí dali quando ouvi o bater de um policial. Me dirigi à porta da frente, não antes de notar que o apartamento estava TOTALMENTE normal. Nada jogado, nada quebrado, porta de um quarto trancada e outra aberta, com tudo aceso. Tive que falar com o policial que deveria ter sido trote de alguém. Ele me contou um sermão e saiu. E eu corri pro meu quarto de novo.
No dia seguinte eu tentei investigar o que tinha acontecido. Bati na porta de um ap vizinho. Não tinha ninguém na hora. Bati em outro. Tinha, aleluia. Um cara me atendeu. Eu aproveitei que ninguém realmente me conhecia ali, a não ser meus amigos, e fingi ser vizinho do apartamento onde, na verdade, era eu quem morava. Falei que ouvi barulhos estranhos, como se tivesse tendo alguma confusão no dito apartamento, perguntei se o cara tinha ouvido algo. Ele disse que não ouviu nada.

Depois desse dia eu peguei o colchão que estava sujo, limpei e deixei secar, e o coloquei de volta no quarto. Comprei uma lâmpada baratinha pra colocar no quarto que estava faltando, e passei a deixar todas as portas abertas à noite. E só deixava acesa a luz do meu quarto e trancava minha porta. Nunca entrou ninguém de carne e osso ali. Era sempre meu colega de apartamento misterioso, como eu o apelidei na minha mente. Havia noites em que ele estava nervoso, e eu ouvia o estardalhaço insano por horas a fio. Outras, eram só os passos pesados e lentos. A lama parou de aparecer e eu tentei me acostumar com aquilo. Uma vez tentei me comunicar com ele, através de leves batidas na parede que separa o meu quarto do que ele estava, mas isso o irritou profundamente. Desde então eu fiquei no meu canto, já que agora eu era só um hóspede nesse apartamento, que pertencia a ele.

Meses depois, era quase como se a estadia dele nunca tivesse existido. Vieram novas pessoas pros quartos, gente boa, que nunca relataram nada de fora do normal. Eu, no entanto, sigo procurando evitar irritá-lo, por via das dúvidas, pra ter um pouco de paz.

Autor: Gabriel Meros

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