23/04/2020

Esse ano, o coelho não vai compartilhar apenas chocolate e alegria

Eu sabia que não deveria ter saído de casa, mas me senti obrigado a fazer isso porque, desde que a quarentena foi suspensa, por ordem do governo, após uma aglomeração da população querendo trabalhar e comer, além de pagar o seu aluguel para não ficar jogado nas ruas, eu não era diferente do que qualquer tipo de pessoa preocupada para preencher sua barriga e dá dinheiro pagando aquilo que parecia um ogro bruto batendo na minha porta todos os dias porque fez quase dois meses sem receber um centavo meu.

As coisas começaram ainda mais frenéticas do que antes, o Parque da Disney ficou um tempo sem funcionar, pois estavam todos presos dentro das suas casas e, quando foi aberto, após um anúncio, as famílias se transformaram em colmeias de abelha com centenas de crianças, velhos e adultos querendo tirar o estresse. Os funcionários estavam preparados, com suas roupas. Na Páscoa, semana temática, deveríamos estar ostentando personagens semelhantes a coelhos. Foi difícil para mim, ainda mais sofrendo aquele mal e a tosse com certeza era uma coisa que não devemos mostrar enquanto estávamos escondidos dentro de uma roupa.

Apesar das centenas de mortes, as pessoas não estavam seguindo as ordens obrigatórias e, os mais pobres, precisando receber para ser escravizado pelos ricos, estavam cumprindo os seus deveres dentro do vestiário com outros homens. O ambiente era consumido por barulhos de tosse, alguns reclamando de dores e dificuldade para respirar, mas deveríamos fazer vista grossa e se comportar como se nada estivesse acontecendo ou nos atormentando.

As minhas ordens eram que fosse o Coelho da Páscoa, recebendo dezenas de crianças o dia todo para fotografar e brincar com elas. Os seus rostos angelicais, o corpo pequeno e frágil, aquela alegria contagiante, tudo isso estava me deixando atormentado. No início foi difícil, da mesma forma que estava sendo para todos, mas a pressão do meu patrão, dizendo que bastava apenas uma gota para me despedir e aquele asqueroso querendo receber tudo, foi o que eu precisava para ser obrigado a fazer o que eu estou assumindo.

Mesmo com as mortes aumentando, crianças e idosos sendo consumidas pelo mal e devastando milhares de pessoas, não ligaram para isso. Para o próprio vírus não foi descoberto nenhum tipo de cura após meses, a população sofrendo com isso. O meu desconforto e culpa precisavam ser preenchidas por algo, como se existisse algo para isso. Antes de trabalhar, eu era alcoolizado por minha própria conta, bebendo ferozmente para tentar diminuir a mágoa de ver mais uma vítima minha, uma criança inocente sendo infestada pelo meu próprio demônio.

Não importou os últimos acontecimentos e tudo aquilo que não parava de se espalhar por todos os lugares... Eles acharam que as máscaras, álcool em gel e cuidados resolveriam isso mesmo!? Eram apenas uma forma retardada de serem vítimas. Eu, por exemplo, coloquei uma fantasia bem assustadora para fazer referência com o filme "Bunnyman". Apesar disso, as famílias não se importaram, porque era apenas um cara fantasiado e elas estavam contentes.

Mesmo dizendo que não estava bem, o seu olhar de despreocupação era tão assustador quanto qualquer tipo de história ou filme de horror, o responsável do parque queria ganhar mais. Sentei na minha poltrona, e mais uma criança se aproximou de mim. Então, ele murmurou que essa é a trigésima sétima criança nesse dia. Encolhi o meu corpo, baixei minha cabeça e o odor de álcool forte era transmitido pelo corpo da caricatura de um personagem de filme de horror. Eu estava sendo esmagado por dentro com tristeza e uma caricatura pequena sentou-se próximo da minha perna, com os olhos brilhantes e parecia animada.

Tentei segurar o máximo, contudo minha garganta já estava ferida suficiente para expulsar o ar saindo dos meus pulmões com milhares de bactérias, jorrando dentro da fantasia, aquecendo o meu rosto e sendo expulso pelos buracos de onde eu respiro. No mesmo momento, espalhando os cabelos daquele menino curioso e com os olhos assustados. Ele perguntou se eu estava bem, me chamando de "Sr. Coelho", e eu respondi que sim. Não queria alarmar mais um deles, então começou a dizer o que desejava nessa Páscoa. Tentei trazer euforia e, mais uma vez, colocando minha língua dentro da minha garganta para não tossir uma segunda vez. Apesar de saber que, mesmo com a sua máscara cirúrgica, as bactérias foram espalhadas pelo seu nariz e olhos.

O fotógrafo, na nossa frente, estava tão morto quanto eu, e ele disse que essa era apenas o início de mais uma família feliz... dezenas e dezenas estavam por vir porque nós apenas estamos no começo dessa Páscoa...

Autor: Sinistro

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