26/06/2018

Olhos Vazios

Meus olhos estão fechados e ouvidos desconcentrados. Não sentia-me tão relaxado a bastante tempo. Tudo que eu faço é acordar cedo e trabalhar, minhas pausas são só para comer alguma coisa ou outra. Ouço uma voz chamar-me ao meu lado:

- Sebastian?

Abro os olhos. Estou numa viatura com meu parceiro, seu nome é Henry.

- Quando acabarmos, é melhor você ir dormir.

Eu não respondo, movo minha mão para meu bolso traseiro da calça e puxo meu celular. Vejo a hora, são 2:31. Algumas gotas de chuva começam a cair abruptamente nos vidros do carro, seus sons são quase inaudíveis graças a sirene ligada. Estamos dirigindo por pouco menos de meia hora desde que fomos chamados; nos disseram poucas informações além de que um grupo de adolescentes estão sendo atacados por alguém em um armazém abandonado. A cidade vem sofrendo com este tipo de coisas a muito tempo: um monstro pálido com braços gigantes sequestrando crianças, um cara com rosto mutilado matando famílias, um palhaço assassino, um indivíduo com fantasia de coelho. Em boa parte dos casos são as famílias que sofrem, muitas mudaram-se este fim de ano. Eu estive pensando em sair da polícia graças a estes casos assustadores, mas meu senso de justiça alimentou-me desde que resolvi entrar. Chegamos na rua que é apenas ocupada pelo armazém com o resto sendo apenas vegetação, o mesmo possui uma cerca grande ao seu redor. Eu reconheci o lugar, já não era usado desde 2009; sua única função agora é ocupar arruaceiros e animais desabrigados. Sai da viatura com meu parceiro e a chuva não havia parado, então analisamos o local brevemente. Vimos que um lado da cerca próxima ao portão fechado está aberta como por uma alicate. Henry move-se e passa pelo buraco, eu vou em seguida. Corremos até o armazém sem perder tempo, eu tento abrir a porta dupla feita de metal enquanto Henry puxa sua Glock 17 ao meu lado. A porta não abre, está trancado por alguma corrente no outro lado. Olho toda a fronte do armazém e vejo uma janela a cima da porta dupla, grande o suficiente e não muito longe de onde estamos, sendo possível acessa-la com apoio.

- Henry, preciso que você me levante até lá! – Falo alto e aponto para a janela.

Henry encosta-se em meio as portas e junta suas mãos assentindo. Eu coloco meu pé direito em meio as mãos e levanto o outro, ele ergue-me. Estou a um palmo da janela, eu coloco meu pé direito em cima do ombro de Henry, pegando impulso. Eu agarro a borda úmida da janela com as duas mãos, rapidamente subindo com esforço para não escorregar. O interior do local é iluminado pelas poucas janelas, não sendo suficiente graças a sua extensão. Eu pulo para dentro, aterrissando tranquilamente no chão. Puxo minha lanterna e miro brevemente ao redor, temos de ser rápidos pois as vítimas podem estar mortas. Dirijo-me depressa até a porta dupla, removo sua corrente e abro-a, Henry entra apressado. Vamos andando pelo meio do armazém, mirando com as lanternas e armas ao redor e meu parceiro determinado em minha frente. Meu nariz começa a coçar e sinto vontade de espirrar.

“Malditas alergias!”

Deixo escapar um espirro não muito barulhento, minha mão que segura a lanterna abaixa-se aos pés de Henry. Recupero minha postura e vejo que ele olha alguma coisa aos seus pés: gotas e pequenas poças de sangue formam-se uma atrás da outra como uma trilha. Entramos com tanta pressa que não examinamos o chão, agora estamos ainda mais aflitos. Passamos a

seguir a trilha, ela nos leva até uma porta de ferro no final do armazém que possui um desenho de uma escada e uma escritura:

“Armazenamento inferior”

Abro e desço primeiro, miro para baixo e vejo uma curva para a direita, continuamos descendo até o fim da escadaria. Chegamos em outro deposito igual ao de cima, porém este está repleto de caixas de madeira e papelão, como se estivesse em uso. Continuamos seguindo a trilha e percebemos poças de sangue formando-se através de algumas caixas empilhadas, ouço Henry murmurar alguma coisa mas continuo acelerando o passo. A trilha para em mais uma porta de ferro, ao aproximar-se ouço barulho de goteiras. Abro a porta cautelosamente apontando lanterna e arma. Este cômodo é menor e nele vejo vários corpos pendurados de cabeça para baixo, estão presos por cordas amarradas em barras no teto, seu sangue é derramado em baldes com alguns transbordando. O cheiro é insuportável, mesmo com minhas alergias consigo sentir a podridão; Henry tampa seu nariz com a manga da blusa e continuamos a andar lentamente em meio aos cadáveres. Ouço um barulho atrás de mim, viro-me e vejo que Henry escorregou numa poça de sangue e segura-se em um corpo com uma expressão apavorada. Antes que eu volte a andar, uma lâmina atravessa o peito do cadáver que Henry está segurando e atinge seu rosto. Meu parceiro cai no chão, um buraco de lâmina em sua testa; sua lanterna cai junto e vejo um par de pernas cobertas por uma calça e coturno pretos atrás do cadáver. 

Pasmo, minha única reação foi mirar nas pernas e atirar, dei um disparo mas o indivíduo correu numa velocidade surpreendente. Fui andando depressa entre os corpos atrás dele, uma mão me segurou pelo antebraço antes que pudesse tentar a sorte e atirar nele ainda correndo. Olho para trás mirando com a lanterna e vejo uma garota de aproximadamente dezesseis anos pendurada, ela está apavorada com lágrimas e sangue cobrindo seu rosto, ela tenta gritar mas sua boca está costurada lábio com lábio. Eu fico ainda mais aflito, tenho de tira-la dali mas aquele sádico ainda está solto. Vejo que ela está presa por uma corda firme amarrada em suas pernas, seguro a garota com um braço, ponho a arma no coldre e movo minha mão por meus bolsos procurando meu canivete. Corto a corda e a garota cai em meus braços. Está frio mas eu começo a suar de pavor; olho ao redor paranoicamente, meu parceiro morto, um maníaco solto e uma garota ferida em meus braços. O cômodo fica ainda mais escuro: as portas foram fechadas e a única luz vem de minha lanterna. Vejo apenas silhueta dos corpos balançando-se devagar, coloco delicadamente a garota no chão, guardo o canivete e puxo minha arma, mirando ao redor junto da lanterna. Vejo os corpos balançar e um vulto passando rapidamente nas sombras. Eu estou ofegante, tremendo aos poucos, seja lá o que for aquela coisa eu não quero morrer. A garota começa a grunhir tentando gritar para alertar-me de alguma coisa, vejo ela com olhos esbugalhados em uma direção e viro-me para onde ela está olhando. Ao mirar minha lanterna, aquela coisa corre ensandecida em minha direção, antes de eu reagir uma lâmina corta meu pescoço. Eu largo a lanterna e pressiono o corte virando-me para a criatura, não consigo ver seu corpo, apenas seu rosto que parece uma máscara azul, seus olhos são inexistentes e um fluído negro sai das órbitas. Minha cabeça fica leve, acabo tonteando e apago.

Eu acordo, sinto estar de cabeça para baixo mas surpreso por estar vivo. Minha vista está embaçada, mas posso ver algumas silhuetas em meio a escuridão e sentir o cheiro podre. Tento mexer-me, meu pescoço e meu corpo doem como se esfaqueado várias vezes. Passo minha mão pelo meu pescoço e sinto uma bandagem no corte, passo a mão nos meus bolsos e coldre mas foi tudo retirado.

“Preciso sair daqui!”

Meus olhos estão adaptando-se a escuridão aos poucos, posso ver que estava pendurado no mesmo lugar de antes junto dos outros corpos. Ouvi o barulho de uma porta abrir atrás, porém não conseguia ouvir passos, eu sabia que aquela criatura era silenciosa. Em um instante ele está em frente ao corpo à minha esquerda, posso ver sua máscara azul e seus olhos negros; passo a controlar minha respiração para que ele não perceba que eu estou acordado. Ele tem garras negras, com elas começou a abrir a barriga do corpo ao meu lado, deslizando a garra calmamente como se pintasse um quadro. Uma dor em minha barriga aumentava cada vez mais, parecia que reconhecia a sensação. Um grito feminino veio de outro cômodo, ele parou de cortar o corpo e enfiou sua mão dentro do mesmo, em poucos segundos ele retirou alguma coisa que a princípio não conseguia reconhecer. Ele andou um pouco mais perto de mim com aquilo em sua mão, reconheci ser um rim.

O que eu vi me aterrorizou. Ele levantou sua máscara, revelando sua pele pálida e mutilada, boca e dentes negros. Em seguida levou o rim até sua boca, mordendo e mastigando o mesmo até não sobrar mais. Após terminar ele abaixou sua mascará, dirigiu-se até mim até ficarmos frente-a-frente e ergueu sua garra. Um grito da mesma voz vem do outro cômodo novamente. Ele enfia sua garra no abdômen do corpo em minha direita, eu fico muito aliviado mas não menos aterrorizado. Ele some de minha vista depressa e ouço a porta fechar-se atrás de mim. Eu olho para a lâmina presa no abdômen do corpo e tento balançar-me para pega-la, pego tanto impulso que acabo esbarrando em um corpo atrás de mim. Na segunda tentativa eu consigo puxar a lâmina: uma faca militar preta, uma parte para corte e a outra para serrar, no escuro pensei ser uma garra. Flexiono meu abdômen tentando ignorar a dor e seguro-me na corda que prende minhas pernas, começo a serra-la com a traseira da faca e em um instante caio de costas no chão frio molhado de sangue. Levanto-me e ando depressa até a porta pela qual entrei com Henry, porém ouço aquele grito e choro feminino novamente.

“Será aquela garota de antes?”

Eu estava apavorado demais para ir salva-la, mas eu sou um policial e esse é meu dever. Sigo a direção do grito, passando entre os corpos pendurados, a dor no pescoço e abdômen continuam. Chego na porta e tento escutar o que pode ter além dela, eu a abro cautelosamente com olhos e ouvidos atentos. Estou em um pequeno corredor com mais algumas portas de ferro, ouço o choro novamente e sigo até ficar frente-a-frente com a porta de onde ele vem. Abro a porta quase completamente, mas paro quando vejo a silhueta da criatura olhando para a garota; ele vira a cabeça em minha direção. Sem pensar duas vezes eu corro para a outra porta e a fecho pressionando contra o outro lado. Ele chuta e bate na porta, no meu estado físico não irei aguentar pressiona-la por muito tempo. Olho ao redor e vejo silhuetas de caixas grandes ao meu lado, tento puxar uma delas com minha mão esquerda e sinto que é pesada; rapidamente puxo ela com as duas mãos e saio da porta, a caixa agora bloqueia a entrada. Ainda ouço as batidas abruptas dele, não tenho onde esconder-me e não estou em condições de lutar.

Meus olhos varrem cada lugar neste cômodo, até encontrar um buraco na parede onde deveria ser uma saída de ar grande o suficiente para eu passar. Eu vou depressa para cima de uma caixa próxima ao buraco e passo meu corpo através dele até chegar na sala ao lado; no mesmo instante ouço o barulho da porta de ferro batendo e a caixa quebrando no outro cômodo. Eu afasto-me do buraco e continuo em silencio, caminho até a porta de ferro e vejo um par de chaves com uma dentro da fechadura; giro a chave destrancando a porta. Eu posso ouvir ele procurando por mim no outro cômodo, haviam seis chaves naquele par, uma delas deveria trancar aquela porta. Sai para o corredor até a porta do cômodo onde ele está; rapidamente fechei a porta segurando a maçaneta, tentei uma chave mas não encaixava, ele tentava puxar a porta quase abrindo, forcei a porta em minha direção e

continuei tentando outra chave que não funcionou. Ele agora estava ainda mais ensandecido, conseguiu puxar com tanta força que agora eu podia ver sua máscara, ele tentou me esfaquear pela fresta da porta; estiquei-me para trás tentando desviar. Botei as chaves no bolso e puxei minha faca, atacando seu braço que estava para fora. Um fluído preto saiu dele e recuou fazendo eu conseguir fechar a porta, troquei a faca pelas chaves e tentei a próxima que finalmente funcionou. Ele agora estava trancado do outro lado, rapidamente fui para o cômodo onde a garota está, com a porta ainda aberta eu vou até ela. A garota está jogada no chão de costas, ela levanta a cabeça devagar em minha direção, sua boca não está mais costurada mas sangra muito. Eu vejo se ela está em condições de andar, olhando para seus pés vejo que o tendão de seu pé esquerdo foi cortado. Ela tenta falar algo mas só murmura; puxo seu braço direito e contorno o mesmo ao redor de meu pescoço, depois pego-a em meu colo.

A criatura parou de bater na porta, pergunto-me se ele descobriu o buraco na parede; antes de descobrir começo a correr com a garota em meu colo para onde lembro-me ser a saída. Corro através do cômodo repleto de corpos tentando desviar o máximo que conseguir, mantendo os passos firmes para não escorregar no sangue. Chego na porta encostada e a abro o mais rápido que posso pois ouço os corpos atrás de mim movimentar-se. Corro pelo deposito repleto de caixas que sangram, vejo pelas janelas que a luz do sol entra por elas. As próximas portas estão abertas facilitando a fuga, vejo as portas duplas do jeito que eu e Henry deixamos e passo através delas. A viatura ainda está lá, corro até a cerca quebrada e esforço-me para passar junto da garota. Corro até o carro, abro a porta de trás e deito ela no assento, sinto-a respirando devagar. Dou alguns olhares para o armazém mas nem sinal do mascarado, eu estou tendo um mal presságio junto de um frio na espinha. Vou para a porta da frente do carro e abro-a, Henry deixou as chaves no espelho dobrável do carro e eu ligo o mesmo, dirigindo para fora do lugar.

Dois dias passaram desde o ocorrido. Eu descobri quando cheguei na delegacia que havia uma cicatriz grande em meu abdómen: meu rim fora removido. Também fiquei com problemas para falar graças ao corte no pescoço.

Estou de folgas merecidas em minha casa. São 2:31 da manhã e eu levanto para ir usar o banheiro; saio do quarto, passo pelo corredor e chego ao meu destino. Após usá-lo, saio e sinto uma presença desconfortável, a mesma que senti naquele dia: aquele cheiro podre e sensação de desconforto. Eu olho para o fim do corredor e vejo aquela silhueta, aquela máscara, aquelas órbitas vazias escorrendo o fluído negro. Ele segura alguma coisa em sua mão esquerda, rapidamente joga aquilo em minha direção: era meu rim comido pela metade. O silencio é quebrado quando ouço ele sussurrar:

- Vim buscar o outro.

Autor: Andrew Fermiano (Nux)

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